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O fim da vacinação contra a aftosa
é uma questão de tempo

Líderes do segmento privado do Brasil, Bolívia e Paraguai reuniram-se em MS

MAURÍCIO HUGO

30/01/2017 - 15h13
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“A decisão de que a vacina contra a aftosa deixe de ser obrigatória já está tomada. Resta saber quando e como isso vai ser feito”. Essa afirmação foi feita em Campo Grande, na última terça-feira, por Décio  Coutinho, consultor em Defesa Agropecuária da CNA - Confederação da Agricultura, Pecuária do Brasil.

Em sigilo absoluto, (a imprensa não foi convidada a participar, mas o Correio Rural esteve presente) foi realizada na Capital, na sede da Famasul, uma reunião do setor privado do Brasil, da Bolívia e do Paraguai, coordenado pelo Grupo Interamericano de Erradicação da Febre Aftosa. O presidente do Giefa, Sebastião Costa Guedes, que é vice-presidente do Conselho Nacional de Pecuária de Corte, presidiu os trabalhos.

Um dos temas mais importantes na pauta foi justamente o controle da febre aftosa no status “sem vacinação”. E conforme explicou Décio Coutinho em entrevista exclusiva ao Correio Rural, esse grupo vem trabalhando há vários anos inicialmente no programa de controle e depois de erradicação da febre aftosa nas Américas. “É a inter-relação do setor privado desses países no sentido de apoiar os programas de erradicação da aftosa, e que o trabalho seja desenvolvido de forma concomitante para que possa atingir o mesmo status de livre de febre aftosa sem vacinação dentro da mesma temporalidade”, afirmou, destacando ser esse o principal objetivo da reunião.

Questionado de como seria hoje a situação da zoonose na América, Décio disse ser tranquila. “Nas três Américas falta hoje o reconhecimento de área livre com vacinação apenas no Estado do Amazonas, o Estado de Roraima, o Estado do Amapá, e na Venezuela. Somente isso, para que a América seja reconhecida como o primeiro continente no mundo a estar livre de febre aftosa, com vacinação”.

O Correio Rural questionou então sobre o quadro no Brasil. Segundo o consultor da CNA, o Brasil já decidiu retirar a vacina. “Mas precisamos saber quando e como poderemos fazer isso. Nesse momento, o setor produtivo, junto com a CNA, a ABCZ e o Sindam, que é o sindicato das indústrias de produtos veterinários, financiaram um estudo que está sendo feito pela USP e que vai subsidiar o Ministério da Agricultura na formulação e apresentação de projeto para ser discutido nas 27 unidades da Federação, com uma proposta para a retirada da vacinação. 

Como a condição de livre de aftosa sem vacinação vai exigir mais recursos do Estado para a continuidade do controle e fiscalização pelos órgãos sanitários, demonstração inclusive já manifestada ao Correio Rural por diretores da Iagro, foi perguntado ao representante da CNA como ele via essa questão: “Vejo essa preocupação como verdadeira, a mudança de status exigirá também uma mudança de estratégia governamental. Na condição atual, de livre de aftosa com vacinação, 99% da responsabilidade é do setor privado, pois é ele que fabrica a vacina, ele que distribui a vacina, é ele que vende, que compra a vacina, é ele que aplica a vacina, ele que comunica a vacinação e mantém o cadastramento das propriedades e mantém o cadastro do rebanho. Mas no momento em que isso sai da condição de livre com vacinação para livre sem vacinação, o que teremos que ter é um aumento do sistema de vigilância e de certificação, e isso é papel dos Estados.  Por isso, esses depoimentos que você ouviu do setor público são verdadeiros”, lembrou  Décio Coutinho.
  
JOGANDO DINHEIRO FORA  

O Correio Rural também ouviu no intervalo da reunião da última terça-feira o presidente do Grupo Interamericano de Erradicação da Febre Aftosa, Sebastião Guedes. Ele manifestou algumas posições diferentes àquelas declaradas por Décio Coutinho. Foi mais enfático ao afirmar, por exemplo, que os produtores estão “jogando R$ 600 milhões fora ao vacinar seus rebanhos”. 

“Acho que a disposição de deixar de vacinar é natural. Em muitas regiões do País estamos jogando dinheiro fora. Não existem razões epidemiológicas para continuarmos com isso. E temos duas opções para retirarmos a vacinação: ou por faixas etárias do rebanho ou por questões geográficas. Agora, não é possível que países que começaram a erradicar a febre aftosa 20 ou 30 anos depois de nós, hoje já são 98% livres sem vacinação - e digo o nome, o Peru com estrutura fundiária muito mais complicada com muitas pequenas propriedades, nas montanhas dos Andes - e tem sucesso. Nós precisamos iniciar um processo de retirada da vacina. Se Santa Catarina retirou a vacinação no ano 2000 e até hoje não teve problemas, isso prova que retirar a vacinação é perfeitamente possível e factível”, afirmou Sebastião Guedes, do CNPC.

Prosseguiu destacando que “no Brasil, atualmente, existem pelo menos 92 milhões de cabeças de gado em estados que há mais de 20 anos não registram casos de febre aftosa. E continuamos vacinando nessas regiões. Temos que avaliar criticamente tudo isso”, enfatizou. E prosseguiu lembrando que, “nós do setor privado, fizemos um grande evento em novembro  de 2015, envolvendo todas as entidades privadas do setor. E chegou-se a uma posição  de que é perfeitamente viável iniciar, este ano, a retiradada da vacinação. Podemos começar pelos estados do Rio de Janeiro, Espirito Santo e vai até o Maranhão. Depois nos estados do Pará, Tocantins, Goiás, São Paulo, Minas Gerais, em 2018. E em 2019/2020 iniciamos com os estados do Amapa, Roraima, Amazonas, Acre, Rondonia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul. Basta iniciarmos. Considero um absurdo transferirmos R$ 600 milhões do bolso do produtor rural para um segmento industrial que fica comodamente sentado em cima de uma obrigatoriedade da vacinação, que é uma prática que agora nem sempre ocorre. Todos compram a vacina mas muitos produtores já nem têm motivação para vacinar”, denuncia.

A NECESSIDADE DE MAIS RECURSOS

E quando questionado sobre a posição do setor de fiscalização e controle de que será necessário muito mais recursos para o trabalho de controle após a desobrigatoriedade da vacinação, Sebastião Guedes simplifica dizendo: “Acho isso um pouco de fantasia, mas se as autoridades sanitárias e os produtores de Mato Grosso do Sul pensam assim, que continuem vacinando então, e outros estados deixam de vacinar”, afirmou. E narrou outra situação semelhante: “Outro dia esse problema foi abordado em uma reunião da Câmara Setorial, quando um Estado manifestou o desejo de não parar de vacinar. Eu coloquei então que se o Estado tem um nível de conhecimento do criador mais atrasado, e não valoriza o sistema de epidemiologia, meu ilustre e querido colega, continuem vacinando. São características regionais”, afirmou. Questionando se seria Mato Grosso do Sul este Estado, Guedes afirmou que não. E prosseguiu dizendo que era um Estado em que há um ou dois anos houve uma apreensão em terrenos baldios e dentro de um rio de sacos de frascos de vacina cheios, sem uso, que os produtores descartaram, pois não têm mais interesse em vacinar”.

Com relação à posição de representantes do setor público da área de controle sanitário sobre a necessidade de mais recursos para a fiscalização, se posicionou garantindo que com o fim da vacinação contra a aftosa nada vai ser tão diferente. “Temos tantas outras doenças para cuidar, brucelose, raiva bovina, as famosas cloristidioses. Vivemos numa época que temos que ser realistas. Para que serve a epidemiologia afinal? Se formos pensar assim vamos voltar a vacinar no Chile, no Peru, nas Guianas”, conclui em tom irônico.