O ano era 1941. Diagnosticado com hanseníase, José Garcia da Cruz, na época com 36 anos, foi internado para tratamento da doença no Hospital São Julião em Campo Grande, no mesmo ano em que a unidade foi inaugurada. Devido ao isolamento a que eram submetidos os pacientes na época, Gavião, como é conhecido, hoje com 110 anos, se curou e continua morando no local, junto com outras nove pessoas que passaram pelo tratamento e acabaram se afastando das famílias.
Na época da inauguração, o São Julião fazia parte de um projeto do então presidente Getúlio Vargas, que instalou 36 asilos-colônia para isolar os portadores da hanseníase, que ainda não tinha cura. Devido a isso e a falta de informação, quem possuía a doença era tratado com preconceito e, na maioria das vezes, abandonado pela família.
Nessa segunda-feira (29), a Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul promoveu o “Primeiro Encontro de Filhos das Vítimas da Hanseníase que Foram Separados Compulsoriamente dos Pais pelo Estado”, com objetivo de alertar que a hanseníase possui tratamento e cura,além de sensibilizar a população.
Segundo informações do Movimento da Reintegração das Pessoas Atingidas por Hanseníase (Morhan), a separação das famílias atingidas pela hanseníase era imposta como forma de evitar o contágio e os filhos eram levados para educandários ou entregues a outras famílias. Muitas dessas pessoas nunca mais reviram seus familiares.
Por não ter mais contato com a família, muitos dos pacientes continuaram morando no hospital mesmo depois de curados e construíram toda a vida no local.
Gavião é uma dessas pessoas, que devido ao distanciamento dos parentes, preferiu continuar no local, onde já mora há 74 anos. Sendo um dos primeiros pacientes, ele faz parte da história do hospital e é querido por todos os funcionários e moradores do local.
Apesar dos problemas de comunicação e da idade avançada, Cruz continua lúcido e se locomove sozinho. De riso fácil, Gavião recebeu a equipe do Correio do Estado na porta do quarto e se divertiu na hora de tirar uma fotografia. “Cuidado para não queimar a máquina”, brincou com o fotógrafo.
Com problemas na fala, a assistente social Érica Tanowe Maddalena, ajudou a contar a história do ex-paciente. Apesar de já ter perdido boa parte dos familiares, Cruz recebe regularmente a visita de uma cunhada, que foi casada com seu irmão e leva mantimentos e roupas para o homem na nova residência.
Da hanseníase, restaram apenas algumas sequelas, como um problema nas mãos. A opção de morar em um local distante da família não abalou o Gavião, que contou ao Portal Correio do Estado parte de sua rotina. Pela manhã, antes do café, ele toma dois ovos caipiras crus. “Como muito bem aqui”, disse.
Ao lado de sua cama, ele mantém uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e uma fotografia de um aniversário comemorado com os amigos do hospital.
Érica afirma que Cruz mantém sua independência e gosta de fazer as atividades sozinho, como comer, andar e arrumar suas coisas. Apesar disso, ele também gosta muito de conversar com os amigos e funcionários do local.
OUTROS MORADORES
O alojamento tem 10 quartos, sendo um para cada morador que ainda vive no local, todos com banheiros individuais. Há também uma sala de convivência, com televisão, e uma cozinha, onde são servidas as refeições e lanches. Além disso, os moradores podem fazer atividades em toda a área do hospital.
Joaquim Vieira Lopes e Avelino Ivo, ambos de 73 anos, perderam o contato com as famílias depois de diagnosticados com hanseníase e hoje moram no alojamento destinada aos antigos pacientes. Lopes disse que a melhor coisa de morar no local é os amigos que fez.
Jânio Eulálio de Oliveira, 53 anos, mora há 10 anos no são Julião. Natural de Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, ele contou ao Portal Correio do Estado que foi internado para tratamento da hanseníase em 1982 e ficou internado no local por cerca de dois anos, junto de seu pai, Eufrázio Eulálio de Oliveira, que também fazia tratamento.
Em 1995, Jânio teve um problema no pé e precisou ser novamente internado. “Queriam me mandar para Bauru,mas eu quis vir para cá”, disse. Quando se curou da doença, uma Irmã o convidou para trabalhar no hospital e ele decidiu ficar.
“Eu fazia trabalhos de faxina e me aposentei há pouco tempo”, contou, acrescentando que não pretende deixar o local e mesmo aposentado continua ajudando nos serviços. "Gosto daqui,é um lugar tranquilo e sossegado".
Já Izaura Secasse Miranda, 71 anos, mora no alojamento há 6 anos. Internada para o tratamento da hanseníase em 1987, ela retornou para casa, nas proximidades do hospital, depois de curada. Em 2009, o marido de Izaura faleceu e, sem parentes na Capital, ela retornou para o São Julião.
“Gosto de ficar aqui, eu queria vir aqui porque ficava sozinha”, disse, explicando que tem parentes em Dourados, porém não tem contato com nenhum deles desde a época da doença. Como o hospital conta com uma grande área verde, Izaura disse que gosta de fazer caminhadas pelo local e quer aprender a fazer crochê.
Bastante ativa, ela recebeu o Portal Correio do Estado na porta do alojamento e durante o período que a equipe esteve no local, ela assistiu televisão, conversou, tomou lanche e fez diversas atividades que comprovam a sua afirmação de que não gosta de ficar "sem fazer nada".
Izaura lembrou ainda de amigos que passaram pelo hospital e elencou nomes de todos os que teve contato, afirmando ainda que muitos dos conhecidos já morreram.
Um dos amigos lembrados por Izaura é Lino Villachá, que aos 12 anos foi morar no São Julião junto com os pais. Devido a doença, teve as duas pernas amputadas, o que não o impediu de ajudar nos trabalhos da unidade, organizando campeonatos e trabalhando na secretaria. Poeta, Lino escreveu e publicou seis livros, casou-se e ajudou a transformar o São Julião de "Depósito de doentes" a um lugar de tratamento e recuperação . Morreu em 1994 e foi enterrado no próprio hospital, como era de seu desejo.
Lino dá nome a rua onde o hospital São Julião está localizado e também a uma escola estadual no bairro Nova Lima.
Túmulo de Lino Villachá no São Julião com sua última poesia
SÃO JULIÃO
O São Julião foi originalmente criado para isolar os pacientes com hanseníase, que eram internados de forma compulsória no local. Segundo o hospital, as pessoas eram afastadas do convívio familiar e, em pouco tempo, o hospital foi relegado ao abandono, transformando-se em um “depósito de doentes”.
As estruturas do Hospital São Julião começam a ficar sólidas a partir de 1969, quando voluntários italianos da Operação Mato Grosso passaram a trabalhar no antigo leprosário, como o hospital era conhecido.
Com a ajuda de voluntários, o hospital se transformou em referência para tratamento da doença na América Latina, além de ser também referência na área oftalmológica.
HANSENÍASE
De acordo com o Morhan, a hanseníase é uma doença causada pelo Mycobacterium Leprae que atinge os nervos e se manifesta na pele. É uma doença de tratamento simples, sendo o mais importante o diagnóstico precoce, possibilitando a cura sem sequelas.
Apesar de ser alvo de discriminação e isolamento dos doentes no passado, hoje a doença pode ser tratada e curada sem necessidade de ser retirada do convívio social.