Em pé e sorridente. Esta foi a Joseane Aparecida da Silva, 33 anos, que recebeu a equipe do Correio do Estado há poucos dias.
Usando as muletas, caminha com desenvoltura recém adquirida, e que representa grande passo desde o acidente que mudou drasticamente sua rotina.
No dia 8 de agosto de 2015, na avenida Duque de Caxias, em Campo Grande, ao voltar para casa, foi atingida pelo carro conduzido por Paulo Henrique Mendes da Silva e ficou prensada contra muro.
No hospital, ainda sem contato com a família, assinou a autorização para amputar parte da perna esquerda.
De lá para cá, foram altos e baixos: quebrou a perna direita ao se aventurar pela primeira vez com a muleta, enfrentou possível diagnóstico de câncer e ainda luta na Justiça pela condenação do réu e, em outra ação, por indenização por danos morais.
Em reabilitação, se prepara, com ansiedade, para usar a prótese, em fase de teste e adaptação. Adotou como filosofia agradecer pela vida, dar valor à família e aos amigos e não reclamar. “Eu tô bem, andando, falando, estou com as pessoas que eu gosto; acho que isso ajuda a gente, eu penso assim”.
A própria Joseane conta como vem superando tantas mudanças na vida e o que está fazendo para aprender a ter esperança e seguir em frente.
BANHO NA CAMA
“Eu já estou em fase de reabilitação. É bastante demorado, estou na fisioterapia. Já chegou a prótese e eu estou experimentando, me dedicando a isto. Nos primeiros dias, eu fiquei baqueada, você não pode fazer suas coisas, tem que ter aquela paciência. Fiquei internada 11 dias. Também tinha quebrado a perna e o quadril. Eu tomava banho na cama, fiquei três meses de repouso mesmo, não levanta, não senta, só deitada. Em janeiro de 2016, bem no comecinho, eu quebrei a perna de novo. Para você ter noção, eu estava fazendo fisioterapia, não dobrava praticamente o joelho. Fui tentar usar a muleta, mas não tinha força, tinha quebrado o fêmur perto da canela. Eu caí, senti o joelho fechar inteiro, coisa que não fechava, o barulho foi horrível, nossa. Estava com a perna toda virada. Médico ainda perguntou ‘como você conseguiu fazer isso?"
"Aí, mais repouso. Seis meses para colar o osso, só na cadeira de rodas, com gesso até a coxa por 40 dias, horrível. Depois, com gesso para baixo do joelho mais 40 dias. Da cadeira eu fui para o andador. Faço fortalecimento nessa [coto] para poder levar prótese e na direita para aguentar o corpo. Fisioterapia duas vezes na semana, nos outros, fico em casa. Até recomendam fazer exercício em casa, mas não faço, dá uma preguiça (risos)."
PROCESSO LENTO
"Faz pouco tempo que estou usando muleta, é tudo lento, é todo um processo. Tem um mês e pouquinho que peguei mesmo. Eu sou cara de pau, lá na Apae [onde faz fisioterapia] falaram para ir com calma, mas eu quis, tem que pegar, evoluir, né? Primeira vez que saí fui ao mercado, pensei ‘vou encarar, do chão eu não vou passar’. Ia ter que usar, tinha que fazer."
"Agora estou bem, sou mais ágil. Até hoje tenho a sensação do ‘membro fantasma’. Eu sinto o pé, os dedinhos, sinto sapato, como se tivesse a perna toda. Aí tá coçando uma parte do joelho e tenta coçar, coço a cicatriz. Tratamento é usar espelho, sensibilização com esponjinha, gelo, água morna, várias coisas. Ainda sonho que tenho as duas pernas, mas também que estou sem. O último que tive, estava andando de bicicleta, mas sem a perna."
"A prótese vai ser um processo. Ainda tenho excesso de pele, tem que tirar. Estou em fase de coto, tem que maturar, a gente usa uma faixa para apertar, amoldar para encaixar a prótese, tirar medida. Está na Apae, para regular. Enquanto não tiver fazendo treinamento de marcha certinho, não tiver segurando em nenhuma barra, nem nada...Depois posso trazer, treinar, perder o medo."
APRENDER A ESPERAR
"É difícil, tem que ter paciência. Técnico da prótese disse que vou precisar fazer academia para fortalcer bem o coto, só a fisio não adianta. Na verdade, se não tivesse machucado essa outra perna, tranquilo. Tenho que refazer ligamento, fazer cirurgia, tenho até que marcar com o médico. Tem que ver esse joelho, se vai tirar placa, se corpo não vai rejeitar."
SALÁRIO
Eu sou cabeleireira, eu recebia bem mais, agora recebo um salário mínimo [auxílio do INSS]. Um mês depois do acidente, recebi R$ 13 mil do Dpvat, gastei tudo, até o que eu não tinha com locomoção, ambulância, tratamento."
"Hoje tem custo das muletas, ir ao médico. Fisio é gratuita, na Apae, prótese também vai ser de lá. No meio disso tudo, teve problema de saúde que voltou. Antes do acidente, tava com seio inchado, machucado, fiz punção melhorou, médico mandou voltar depois de seis meses, mas aí aconteceu o acidente."
"Quando voltei ao médico, ele assustou, seio tava inchado no mesmo lugar. Fez exame, tinha suspeita de câncer, mas era mastite crônica. Aceitei a amputação, mas isso mexeu muito comigo. ‘já perdi um lado da perna, agora tenho que perder um seio? ah, não vou aguentar não’. Mas tem que fazer punção e controlar."
SEM CONTATO
"O Paulo? [condutor]. Não tenho contato, acho que é motorista de carreta, não sei muito bem, nunca quis saber. O pai dele mora por aqui no Coophatrabalho. O pai ligou, perguntou como estava a questão psicológica, se pudesse, ia ajudar. O filho dele estava em Cuiabá, de motorista, eu não sei nada dele. Acho que o encontro vai ser no dia do julgamento. Não tenho raiva dele, não foi assim: ‘ah, vou atropelar aquela ali’, não tinha intenção. Mas claro, ele assumiu riscos."
"Nunca questionei, acho que acontece, essas coisas acontecem. Assim como eu estava, você poderia estar, não fui a primeira nem a última.O problema é mais de limitação que muda, mas nunca tive nada do tipo ‘ai, o que vai ser de mim agora’.
DIA DE TRISTEZA
"De vez em quando bate tristeza na gente, porque mulher é assim. TPM, então, nem se fala. Tem horas que você não quer ver ninguém, com ou sem perna, é assim mesmo, não mudou nada (rs). Chorei no comecinho, aquele momento de luto pela perna, senti saudade de voltar a andar. Mas foi pouco, meu pai veio, falou comigo, deu as palavras certas e parei. ‘eu vou ficar chorando nada, eu vou ficar bem, melhorar e pronto”.
CHORO
"Antes, tinha parado de falar com Deus, achava que não era hora certa. Uma vez fui à igreja em Dois Irmãos do Buriti, naquele dia eu chorei. Padre falou que eu ia ficar bem. Meu emocional foi lá embaixo, perdi o controle, foi bom. Saí de lá, leve, aliviada. Depois nunca mais chorei. Na verdade, dei mais valor à vida. A gente é muito fútil em algumas coisas; acaba melhorando, dando valor para outras coisas: família, amigos, tudo."
"E a questão de não reclamar; eu não reclamo. Se não der, aí se sabe que aquilo ali é o limite para você, eu vejo assim. Eu tomo banho sozinha, se não consigo pegar alguma coisa, eu peço. Tenho mais equilíbrio, mais coragem, vou metendo a cara, penso ‘não, vamos cair aqui, vamos levantar’.
"Antes, eu não podia pegar a muleta, eu tremia. Lembrava daquele dia que caí. Imagina se eu lembrasse do acidente, as pessoas falam que foi melhor assim. Eu quero voltar a trabalhar, mas não sei como vai ser, acho que não volto mais para o salão, acho que tem que ter mais agilidade. Acho que vou estudar, prestar concurso."
GRATIDÃO
Eu agradeço por estar viva, por estar andando. Tem gente que fica na cadeira de rodas. O que tem naquela Apae de criança com paralisia cerebral, mas está alegre, eu vejo exemplo de outras pessoas, então eu penso ‘porque eu vou chorar, porque vou reclamar?” Eu tô bem, andando, falando, estou com as pessoas que eu gosto, não vou reclamar. Acho que isso ajuda a gente, eu penso assim.


