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Thiago Cyles da Silva Oliveira: "A sociedade dos vampiros"

Mestre em Letras

Redação

05/08/2017 - 01h00
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Hoje muito se fala da ciência que prolonga a vida com alguns hábitos saudáveis ou algumas intervenções. Exercícios físicos, dieta equilibrada, não beber, não fumar, cirurgias plásticas, cremes e remédios milagrosos. Pronto. O eterno elixir da juventude. Com algumas práticas, podemos viver mais e aparentar bem menos do que a idade que realmente temos. Ok. Mas ainda não existe nada, sem injúria física, que seja capaz de tornar as nossas memórias sempre recentes e o passado vivido deletado.

Ao julgar pelo mundo tecnológico, qualquer jovem adulto de 30 e poucos anos pode parecer um idoso, pelas lembranças que traz consigo. A primeira demonstração que tive disso foi quando uma sobrinha pequena, vasculhando meus guardados, encontrou um Walkman antigo no meio das minhas coisas. E lá veio ela com cara de espanto, como se tivesse encontrado um objeto do século passado, e de fato tinha. “O que é isso, tio?”. O rádio estava encostado apenas uns dois, três anos, mas para ela já era obsoleto, ou melhor, desconhecido. E desde então, meu efeito mumificante com as gerações mais novas tem sido cada vez mais constante.

Outro dia, meus alunos ouviam boquiabertos quando expliquei a expressão “cair a ficha”. Eles, que nunca precisaram comprar um cartão telefônico, ou talvez nunca tenham precisado usar um orelhão, não imaginavam que para fazer uma ligação no trambolho inútil que ainda reside em cada esquina precisava-se de ficha um dia, a qual muitas vezes demorava a cair. 

Mas, apesar de tudo que fazem, eles ainda são os mesmos e vivem como eu vivi. Hoje, o sonho de consumo deles é ser youtuber. Pensar que, quando comecei a explorar o site, lá não cabiam vídeos maiores que dez minutos e boa parte do que se procurava não se encontrava. Entendo o fascínio que os jovens de hoje têm pelo celular. Sempre me comportei mais ou menos como eles, só que de maneira muito mais analógica. O êxtase do meu narcisismo era quando encontrava um toca-fitas que também gravava voz. Gravava qualquer bobagem e depois ficava ouvindo repetidas vezes o que eu mesmo tinha falado. E vídeo? Nem se cogitava tal coisa. Só víamos câmera quando alguma prima exibida fazia aniversário e mandava filmar a festa. Quando comprei a minha primeira câmera digital, a primeira filmagem que fiz foi de mim mesmo no espelho. Fui o pioneiro da selfie. 

E os viciados em Netflix? Não há nada de novo nisso. Talvez, na minha adolescência, eu quisesse ver o mesmo tanto de filme que eles veem hoje. A diferença é que na minha época tínhamos de nos contentar com o que passava na Sessão da Tarde ou parar toda a brincadeira na rua e correr para casa e ver Tela Quente. Os mais afortunados podiam alugar VHS, e mais tarde DVDs, na locadora. Hoje, nada disso é preciso. Se o seu filme não está na Netflix, tem grandes chances de ele estar no YouTube. Se não estiver em nem um dos dois, você pode facilmente baixar. Se não quiser ter esse trabalho, é só escolher outro. Existem milhares de outras opções.

E agora a TV é LED e Smart, com acesso à internet. Nunca imaginei tal coisa quando criança. Quando conseguimos adquirir a primeira TV com controle remoto, achamos que nada mais podia nos superar. Afinal, isso ocorreu depois de anos em que usávamos uma televisão, na qual, para sintonizar os canais, era preciso ficar rodando um palitinho vermelho até que a imagem melhorasse, quando melhorava.

Até mesmo, o uso da expressão “no meu tempo” hoje está cada vez mais precoce. Antigamente ela era habitual nos avós octogenários, quando reuniam os netos em roda para contar história. Hoje qualquer garoto do Ensino Fundamental II usa o termo para comparar o seu comportamento com os dos colegas do Ensino Fundamental I.
 E assim vamos vendo tudo simplesmente desaparecer. Já se foram as locadoras de vídeos. O Uber vai aos poucos extinguido os táxis e mototáxis. As bancas de revistas já vendem de tudo, menos revistas. Sumiram os CDs. Ninguém mais precisa ouvir o Lucas do “Amor sem Fim” para saber a tradução da noite. Está tudo no Google.

Cada dia o mundo está mais novo. Cada dia o mundo está mais velho. Não existe tempo para a saudade, porque não existe mais tempo para se acostumar com mais nada. O importante é o amanhã, o ontem e hoje só são lembrados na hora do descarte. Perdoai-nos, Senhor, não sabemos o que fazemos.

ARTIGO

Produtos livres de desmatamento nas estratégias da União Europeia

11/04/2024 07h30

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O Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento é um entre vários componentes do Pacto Ambiental Europeu (European Green Deal), que tem como objetivo final atingir neutralidade de emissões de gases de efeito estufa em 2050, com um crescimento econômico livre da exploração excessiva dos recursos naturais e sem deixar ninguém para trás.

Trata-se, portanto, de uma peça dentro de um quebra-cabeça bem mais complexo que visa tornar a Europa um continente sustentável e carbono neutro.

Desde 2019, o Pacto Ambiental Europeu apresenta diretrizes que vão sendo gradativamente regulamentadas, cobrindo de energia renovável a produção de alimentos, passando por transporte e construção civil.

Trata-se de um marco legal abrangente que aborda diversas questões ambientais, incluindo o desmatamento, como parte dos esforços da União Europeia (UE) para um novo modelo de economia verde. 

O regulamento para produtos livres de desmatamento, aprovado em 2023, disciplina as atividades dos importadores europeus que passam a ser responsáveis por garantir que os produtos adquiridos não venham de áreas desmatadas depois de 31 de dezembro de 2020.

As restrições entram em vigor no final de 2024. Os importadores são os responsáveis pela implementação das verificações nos países exportadores, as chamadas “due dilligences”. 

As implicações para o Brasil são significativas, pois a UE é o segundo maior comprador dos nossos produtos agropecuários. Enfrentamos sérios problemas de desmatamento ilegal na floresta amazônica, além de questões fundiários e sociais.

Outro ponto importante é que a legislação europeia não faz distinção do que é considerado desmatamento legal ou ilegal. A normativa claramente se refere a desmatamento em geral. 

Esse ponto vem sendo questionado pelo governo brasileiro, alegando que está acima das exigências legais do ordenamento jurídico do país. Argumenta-se que essa normativa representaria uma forma de barreira não tarifária aos produtos do Brasil.

Entretanto, o argumento contrário é de que a UE tem a prerrogativa de estabelecer os critérios para os produtos que farão parte das suas cadeias de suprimento. E, como o objetivo maior é a redução dos impactos ambientais do consumo dos próprios europeus, nada mais lógico do que exigir que seus fornecedores sigam padrões compatíveis com essa ambição.

Importante notar que há fortes reações ao Pacto Ambiental dentro da própria UE, como vimos recentemente nos diversos protestos de produtores rurais no território europeu.

Embora estejam sensibilizando parte da sociedade e postergando algumas limitações, dificilmente a insatisfação dos produtores europeus ou dos governos fornecedores de produtos agrícolas para a Europa terão força para uma guinada nos objetivos de longo prazo da UE.

Parece haver um sério proposito do continente em mudar completamente suas bases de desenvolvimento, mirando a transição para uma economia mais resiliente e de baixas emissões de gases de efeito estufa.

Ao Brasil cabe o desafio de entender essas normativas e entrar em um processo de negociação sério e embasado na ciência. Ainda há grandes lacunas sobre como serão feitas as verificações do desmatamento e, sobretudo, como serão mapeadas as origens de cada lote de exportação.

Precisaremos acelerar nossos investimentos em rastreabilidade e transparência nos processos produtivos, assim como no aprimoramento de plataformas de monitoramento territorial. Tudo isso em consonância e em estreita colaboração com os importadores e agentes da União Europeia.

Ainda estamos em um momento de discussão e entendimento junto aos agentes europeus de como o novo regulamento será implementado no Brasil. Entende-se que será um processo com aprendizado mútuo e um período de adaptação.

Os entes governamentais têm o papel de catalisar essa discussão entre produtores, processadores e exportadores brasileiros para que estejamos prontos para manter a liderança como fornecedores de produtos agrícolas para a União Europeia. 

 

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ARTIGO

Era uma vez em uma escola na Suécia

11/04/2024 07h30

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Depois de anos educando as crianças quase que exclusivamente com recursos digitais, o Ministério da Educação da Suécia começou a perceber alguns sintomas perturbadores nas suas crianças: deficiência na leitura e na compreensão de textos apropriados para a idade, muita dificuldade de escrever e, quando solicitadas, escritas realizadas apenas em caixa alta.

Mas o que mais chamou a atenção foi a percepção de que as crianças também começaram a apresentar dificuldades para expressar o que sentiam, pois lhes faltava vocabulário até mesmo para descrever cenas breves ou relatos de emoções simples.

Muitas dessas manifestações, resultantes da falta de exercício cognitivo e motor, assemelhavam-se a alguns transtornos psicológicos, e não é de se espantar que muitos pais possam ter procurado psicólogos, feito exames ou mesmo ministrado medicamentos, preocupados com a lentidão, o mutismo ou ainda com dificuldade de compreensão de seus jovens filhos.

O governo sueco, diante dessa constatação, resolveu dar uma guinada nas suas orientações escolares e agora estimula fortemente o uso de livros em vez de laptops, como também incentiva a leitura em voz alta, as rodas de conversa e a prática da escrita - inclusive ditados - com o objetivo de reverter o cenário que se desenhava catastrófico para o futuro.

Crianças que não são estimuladas desde cedo em atividades motoras e intelectuais podem ter dificuldades de desenvolvimento profissional na vida adulta, particularmente em um mundo onde a criatividade e a inovação são realidade em todo lugar. 

No último Pisa, divulgado em 2023, o resultado geral dos jovens estudantes suecos foi de 487, ante 499 registrado na edição anterior, de 2018. Em Matemática, a queda foi de 15 pontos e em Leitura, de 10 pontos.

Suficiente para que fizesse um país sério, como a Suécia, acender as luzes amarelas e buscar compreender as razões dessa perda de energia no aprendizado de seus jovens cidadãos, (para além dos efeitos da covid, que afetou de maneira praticamente igual os países participantes).

Uma das medidas que o governo buscou implementar em todas as escolas - embora na Suécia o programa e as orientações pedagógicas não sejam unificadas como no Brasil - foi: menos celular, menos laptop e mais livro, leitura, escrita e conversa. O básico que, desde mais ou menos cinco séculos atrás, tem orientado a ideia do que é ensinar e aprender.

 Lógico que esta constatação não implica em demonizar o uso de tecnologia em sala de aula, mas de usá-la com sabedoria, de forma que ela ofereça o que, de fato, não é possível conseguir por outros meios.

Mal comparando, é como o hábito de muita gente usar palavras em inglês para se referir a coisas ou situações nas quais já existe uma palavra em português perfeitamente cabível. Esse é o mau uso da língua estrangeira. O que não significa que não se deva aprendê-la e usá-la, muito pelo contrário.

A tecnologia compreende um conjunto de ferramentas e habilidades que deve servir para ampliar nossa capacidade de ler, raciocinar, produzir e nos comunicar. Mas, para isso, precisamos antes saber ler, raciocinar, produzir e nos comunicar.

O perigo do uso de celulares e laptops no ensino fundamental é o de diminuir ou mesmo obstaculizar  o desenvolvimento motor e cognitivo das crianças, além de dificultar a expressão de ideias, emoções e socialização, por falta de vocabulário capaz de se fazer entender quando relatar uma experiência.

O fenômeno hikikomori, que se refere aos jovens que abandonam qualquer contato social real e mantêm-se isolados em seus quartos, comunicando-se apenas pelas redes sociais, vem se alastrando por todo mundo, assim como a descrição de novos transtornos psicológicos associados à dificuldade de comunicação e socialização. A saída, porém, pode estar um pouco antes do consultório médico ou do psicólogo. Na boa e velha sala de aula.

 

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