O ato de escrever para todos nós, poetas e escritores, sem dúvida, é algo que envolve emoções multifacetadas...
Uns escrevem para si mesmos, como um processo de catarse, para expulsar os demônios que lhes corroem as entranhas ou agradar aos seus tímidos anjos. Outros, para compartilhar sentimentos diversos seja lá com quem for.
Na motivação para escrever, de um modo geral, a maioria se reconhece tal como construtores de pontes por onde se realiza a travessia entre si e eles próprios; ou entre eles e o outro, como defendia o filósofo russo Mikhail M. Bakhtin.
Com estilos variados, o fato é que todo aquele que escreve vai enchendo a vida de magias. Mas haveria fórmulas mágicas para se escrever bem? Sim e não. Depende do conceito que se tem do que seja “escrever bem”. Seria dominar as regras gramaticais? Conhecer profundamente as características dos gêneros literários?
Fazer-se entender o mais claramente possível pelo seu leitor? O fato é que escrever bem é um conceito muito, muito subjetivo. Se, para mim, a leveza de um texto, sua fluidez, seu ritmo, a cor e o sabor das palavras e a criação de neologismos me levam às nuvens, para outros, pode ser, na poesia, a métrica exata, a rima rebuscada; na prosa, a objetividade, o realismo acadêmico, a fantasia contida, as incógnitas, os suspenses...
Há umas quatro décadas, alguém da área literária teve a “brilhante ideia” de parafrasear Thomas Edison (e não Einsten, como muitos imaginam) quando inventou a lâmpada, passando a divulgar que “fazer literatura é 1% inspiração e 99% transpiração”. Discordo totalmente de tal afirmação, bastante fora de moda.
Na minha opinião, escrever é tão subjetivo quanto seguir os caminhos do próprio coração. Para muitos, esses caminhos são bucólicas estradinhas, sem porteiras nem trancas, por onde as palavras caminham enquanto observam as belezuras que as cercam.
Para outros, no entanto, são perigosas e modernas estradas asfaltadas, de mão única ou dupla, por onde a escrita vai passando, vai correndo, vai voando, ora obedecendo às regras de trânsito gramatical, ora passando pelos sinais vermelhos, alguns pela pressa de chegar, outros pela rebeldia com que dirigem o seu ato criador, ou ainda por um daltonismo literário.
Em todas essas três causas (há outras), nós, que escrevemos ou pretendemos fazê-lo, temos de ter a maturidade de acolher aquele terceiro olhar, o de fora, o isento das preocupações do autor, aquele que nos ajuda a dar cabo dos “sacis” citados por Monteiro Lobato em sua célebre reflexão: “Durante a revisão, os erros se escondem, fazem-se positivamente invisíveis.
Mas, assim que o livro sai, tornam-se visibilíssimos, verdadeiros sacis a nos botar a língua em todas as páginas. Trata-se de um mistério que a ciência ainda não conseguiu decifrar”.
Evidentemente, todos nós idealizamos um cenário sem sacis em nossos escritos. Mas não tem jeito. Os gurizinhos travessos aprontaram até com nosso impecabilíssimo e elegantérrimo Machado de Assis. Se bem que, no caso do maior escritor da Língua Portuguesa (minha opinião), quem aprontou foi um bisavô do saci, chamado tipógrafo.
Em 1901, Machado de Assis fez um agradecimento, no fim do prefácio da sua obra “Poesias Completas”, às palavras elogiosas de um amigo, também escritor, Caetano Filgueiras.
O livro foi publicado por Baptiste-Louis Garnier, um francês radicado no Brasil, cuja editora ficava na França, motivo pelo qual “Poesias Completas” foi composto e impresso naquele país. Lá, aconteceu a maior “judieira” com o nosso Machado: na frase “... A afeição do defunto amigo a tal extremo lhe cegara o juízo que não viria a ponto reproduzir aqui aquela saudação inicial”, texto original de Machado sobre Filgueiras, que já havia falecido à época, a vogal “e” foi trocada por “a” pelo tipógrafo responsável, mudando totalmente seu sentido, além de ser, obviamente, um termo bastante inapropriado para um agradecimento, mesmo que o agraciado já tivesse partido para a outra vida.
De modo que, acostumada que sou a ouvir os assobios dos sacis, não faço tragédia quando alguns deles saltam dos textos que escrevo ou dos que leio. E olha que leio bastante.
Encontro-os nas obras de professores de Língua Portuguesa, em textos de revisores, de advogados... Enfim, eu, tu, ele, nós, vós, eles, sem exceção, ninguém está a salvo de ser incomodado por um, dois, três ou um monte de sacis a pularem, de modo travesso, de dentro dos textos já publicados, querendo nos constranger com suas línguas irônicas e sem juízo.
Quando isso acontecer, lembre-se: se os sacis são um mistério que a ciência ainda não conseguiu decifrar, quem somos nós para fazê-lo?