Pensar o Brasil de amanhã, após dois ou três anos de instabilidade, não é tarefa fácil. Lembro-me de minha juventude, entre Campo Grande e o Rio de Janeiro, quando me indagava sobre as vicissitudes da vida política nacional, as dificuldades econômicas – eram anos de inflação elevada e algum desemprego – e sobre o cenário internacional, então polarizado entre o “mundo livre” e o “mundo da opressão”.
Eram anos de efervescência da Guerra Fria e das disputas entre os blocos capitalista e socialista. A bipolaridade parecia ser insuperável e não se imaginava que um dia a União Soviética poderia soçobrar.
Vinham em meu socorro diversas leituras, mas uma em particular que quase hipnotizava, o romance “Esaú e Jacó” e seu desdobramento, o “Memorial de Aires”.
Machado de Assis foi um dos raros escritores que conseguia transpor, com maestria, os grandes debates políticos de época em cenas cotidianas do Rio de Janeiro da Belle Époque.
Nascido em 1839, em casa da Rua Cosme Velho, onde faleceu em 1908, teve vida simples, da infância no Morro do Livramento a aprendiz de tipógrafo, colaborador no Correio Mercantil a escritor de sucesso, de poeta amador a presidente da Academia Brasileira de Letras, fundada em 1896. Sua capacidade de interpretação dos acontecimentos políticos, porém, era extraordinária.
Qual não foi o fascínio de ler pela primeira vez o “Esaú e Jacó” e deparar com o capítulo LXIII, “Tabuleta Nova”, no qual Machado abordou a transição da Monarquia para o Império, em uma das passagens mais conhecidas da história da literatura brasileira. Nela, o personagem Custódio, proprietário da Confeitaria do Império, revelava ao Conselheiro Aires toda sua angústia diante das primeiras notícias sobre a revolução, ou seja, sobre a proclamação da República.
Uns dias antes havia mandado pintar nova tabuleta com o nome tradicional do estabelecimento e temia que as vidraças de seu estabelecimento viessem a ser quebradas por manifestantes republicanos ou algo pior. Além disso, perderia o dinheiro gasto na tabuleta nova.
O Conselheiro Aires, com a acuidade própria dos diplomatas, o que era seu caso, sugeriu algumas alternativas, diante das quais Custódio apresentava suas objeções. Não lhe agradou Confeitaria da República, por não saber se o novo regime teria forças para sobreviver.
Confeitaria do Governo desagradaria eventualmente algum opositor ao status quo. Escrever em letras pequenas “Fundada em 1860” ou “das leis” não evitaria que o leitor, ou melhor, o republicano enfurecido, ficasse apenas nas letras em destaque. Confeitaria do Catete poderia atrair clientes também para a concorrência. Enfim, talvez ficasse com Confeitaria do Custódio, afinal, “as revoluções trazem sempre despesas”.
O Conselheiro Aires sugeria, ao contrário do que pensavam muitos dos que sofreram as agruras da instabilidade política, que nada mudaria: “Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a Constituição”.
Certeiro ao interpretar a proclamação da República como uma mudança institucional, que não abalou as estruturas do cotidiano, o Conselheiro Aires tranquilizava o leitor diante das crises nacionais.
Machado de Assis, porém, não compreendia apenas as continuidades da vida do País. Conheceu as décadas de estabilização política do reinado de D. Pedro II, as dúvidas que se fizeram presentes à época da Guerra do Paraguai, as crises da década de 1880, a abolição da escravidão, a proclamação da República, a efervescência da vida política e intelectual do Rio de Janeiro de início de século.
Já em 1859, escrevia em defesa da imprensa e da liberdade de expressão diante das pressões das aristocracias: “Com o jornal eram incompatíveis esses parasitas da humanidade, essas fofas individualidades de pergaminho alçado e leitos de brasões. (...) É fácil prever um resultado favorável ao pensamento democrático”.
Com essas palavras de Machado retomo as considerações iniciais, para dizer que suas palavras me ajudaram na compreensão da redemocratização do Brasil, da Constituição de 1988 e mesmo no entendimento do fim da Guerra Fria. O que pensar dos acontecimentos atuais no plano internacional e interno?
O Brasil de amanhã não será o resultado da mudança de uma mera tabuleta, mas muito do que conhecemos continuará em nosso dia a dia após a próxima segunda-feira.
Quando perguntamos a cada concidadão e concidadã o que esperar do amanhã, não encontramos quem defenda a manutenção da corrupção do País, o descaso com escolas e hospitais, a segurança relegada a um segundo plano ou os governantes e parlamentares que pensam mais em si que no bem comum.
Talvez possamos, daqui a uns poucos anos, repetir a crônica machadiana e brindar a “um resultado favorável ao pensamento democrático”.