Devagar, lentamente, diz a letra da música, cujo sucesso contraria o título por causa da rapidez da aceitação no mundo fonográfico de uma fórmula que envolve a simplicidade e um ritmo animado e repetitivo e que fez com que fosse ouvida nas paradas de sucesso em 45 países, atingindo a marca absurda de um bilhão de visualizações na web.
Acredito que a melodia já tenha balançado o esqueleto de toda essa gente, uma vez que o ritmo latino conquista adesões, embora a letra, nem sempre conhecida, quase nunca é entendida, exceção feita se traduzida.
Nos dias atuais, ela vai de encontro ao recente alerta da apresentadora americana Oprah sobre “abusos sexuais que se alastram em várias áreas de entretenimento”, embora dê um “tom” diferenciado ao manifesto de intelectuais e artistas francesas, com a participação da “Belle des Jours”, C.
Deneuve, defendendo “a liberdade de importunar” dos homens, “indispensável para a liberdade sexual”, condenando o puritanismo exacerbado.
A isso se reserva uma discussão indefinida, justo quando por um lado surge um líder de bilheteria e de aceitação de uma parte do público, um filme erótico em que a protagonista é submissa às vontades sadomasoquistas do seu parceiro em “50 Cinquenta tons de Cinza” e que se repete invertendo os papéis para conquistar a outra parte do público em “50 Tons mais Escuros”, a menos que ambos os lados concordem com as diferentes proposições e que de fato aceitem os diversos tons, nuances, matizes e as mais variadas cores, além dessa dicotomia (divisão), do preto e do branco, a discordância reinará.
A mundialização foi o fenômeno responsável pela disseminação de informações e hábitos entre territórios que antes viviam suas particularidades no isolamento e no desconhecimento dos seus vizinhos, e a música e os idiomas passaram a sofrer a interferência em suas culturas regionais, ao se modificarem costumes com influências externas nos gostos e na aceitação de uma agenda proposta e promovida pelo mercado dos países economicamente mais desenvolvidos.
O projeto da globalização que atendia ao anseio neoliberal de que o mercado promoveria a igualdade econômica, dispensando a intervenção do Estado, provocou, no entanto, concentração de renda e dependência dos países pobres às instituições financeiras mundiais.
Na área social, surgiria uma crescente intolerância mundial de movimentos que passaram a lutar contra aqueles que infringem os direitos humanos, como resultado do rearranjo das forças políticas nacionais que apostaram num Estado policialesco, com a conivência do sistema legal, disseminando incertezas e medo (desemprego, imigração, terrorismo), afastando-se das suas obrigações sociais, deixando que os cidadãos resolvessem suas pendências com opiniões por meio de ações que invadem outros espaços de interesses individuais ou de classes sociais.
Essa intolerância demonstrada no preconceito, na indignação, fruto de ressentimento latente, acorda quando as populações se veem ameaçadas por uma mudança de um modo de vida diferente ainda desconhecido, mas comparativamente melhor, por tradições e costumes importados e supostamente bem-sucedidos, por um cenário de aparente bem-estar, de ritos, crenças e ações coletivas que exaltam a união de minorias historicamente bem resolvidas.
Os grupos nacionais hoje convivem e aceitam as ideias desde que estas não ultrapassem os limites de seus interesses, coletivos ou individuais, caso contrário, surge o desrespeito e o sentimento de vingança sobre o de justiça.
Temas sociais polêmicos, descriminação, rejeição à diversidade, restrição à liberdade de expressão e desrespeito a opiniões controversas passam a ser motivo de discórdia e intolerância, que só serão evitadas com a mistura das cores.
Particularmente, a banalidade da letra nada acrescenta a coisa alguma, embora o título e o desenrolar da música sugira que as conquistas podem ser resolvidas desde que lentamente, “des-pa-ci-to”.