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Luiz Alvez: 'A revolta dos remédios'

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Luiz Alvez: 'A revolta dos remédios'

Redação

18/01/2018 - 07h30
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Na cozinha aqui de casa, mais precisamente na prateleira, existe uma caixa de madeira na qual guardamos remédios. Era uma noite de tempestade e a insônia me acompanhava. A luz acabou de repente e, com um pires de vela acesa nas mãos, me aproximei da prateleira.

Um relâmpago cortou o céu, o trovão apagou os meus sentidos e num estalo me vi perdido entre meus remédios. Estavam reunidos numa espécie de assembleia. Tapei um dos ouvidos com a mão e aproximei o outro bem perto deles: Corus era o mais exaltado: “Eu controlo a pressão arterial, portanto, mereço o posto de rei da prateleira”.

Ao lado dele, Cibofibrato balançava a cabeça em forma de apoio, já pensando no cargo de primeiro-ministro.

Rompendo entre eles, Metformina se ergueu colérica: “Eu controlo o diabetes, sem mim, de nada adianta baixar a pressão!”. Um tanto escondido entre dois enormes potes de vitaminas, concordei feito um assessor bajulador, ciente da importância da Metformina, sem a qual, meu sangue adoça.

Como os ânimos permaneceram exaltados, naquela de conciliadora, Paracetamol se colocou à disposição para assumir o cargo, caso não houvesse consenso: “Se causar dor ou febre, estou aqui!” e ergueu as mãos.

Fosfato de Sitagliptina ameaçou usar a força: “É na luta que impérios se constroem!”, bradou, conseguindo calar a turba por instantes.

Sonrisal rompeu o silêncio, a voz repleta de xis, ameaçando se atirar num copo d’água se não fosse atendido: “E nem quero ser rei de canto algum, apenas que parem de tirar o sarro no meu jeito de falar”. Valda, a pastilha, sorriu, cínica.

Alopurinol, Leite de Magnésio e um Xarope maltrapilho se uniram, já lançando o lema: “unidos venceremos!”.
Tentei despertar beliscando meu braço, mas Mertiolate me olhou de um jeito estranho, me fazendo recuar. De repente, um grupo de vitaminas olhou para mim com cumplicidade.

A passos vagarosos, dois remédios para dormir se juntaram à turba, pouco se incomodando com o Xarope maltrapilho que gritou: “Vocês vão ver o que é bom para tosse!”

Um tanto perdido, Vick Vaporub se mostrava chateado por não ter nada para desentupir e, ao passar perto de mim, cumprimentou o meu nariz, seu velho conhecido.

“Cegos!” gritou o colírio, batendo no peito, na arrogância própria dos lubrificantes: “Não percebem que para ser rei é necessário primeiro enxergar?”

Me preparei para concordar quando ouvi atrás dele escapar uma voz metálica: “Cale-se, você está com a validade vencida!” alertou o antialérgico.

Largada num canto, Dipirona mantinha o olhar perdido, indiferente à revolta, perdida na dor da saudade de um amor do passado, uma sirigaita chamada Cibalena, que partiu sem se despedir.

Todos se calaram quando o pote de Emulsão de Scott se aproximou arrastando o seu lume de gorduras. Ninguém se atreveu a falar, completamente lesos, razão do respeito e admiração por um remédio jamais usado desde que chegou à prateleira.

E a luz voltou, forte e repentina, me trazendo à realidade; apegado numa leve tontura, sem saber ao certo qual remédio deveria tomar.

*André Luiz Alvez. Escritor e publicitário. Presidente da UBE-MS.