Observo a onça-pintada impressa nesta cédula de cinquenta reais. É linda, perfeita. Bela lembrança do meu Pantanal, uma das regiões de maior densidade da onça-pintada, predadora às voltas da criação do gado. Muitas vezes é caçada pelos fazendeiros como retaliação a seus enérgicos ataques na madrugada.
Sempre houve fascínio pela onça-pintada, símbolo de força e poder. Os maias acreditavam que ela facilitava a comunicação entre vivos e mortos, protegia o reino espiritual. Os astecas cultuavam a pantera como animal totêmico do poderoso deus Tezcatlipoca, que acompanhava os guerreiros vestidos com pele de onça, padrão de manchas fantástico de rosetas amarelas e pretas. Para esses povos, na selva, em meio ao som de tambores, levantava-se o espírito do jaguar, o senhor das montanhas que alimentava suas entranhas do sol negro do crepúsculo e da estrela d’alva. O deus-jaguar, o jaguar-homem, que saltou com garras e olhos de jade sobre o vale americano onde jaz a raça índia.
Há tanto mistério nessa fera robusta, musculosa, atarracada, capaz de rastejar, nadar, escalar. Vem a passos lentos e macios, preparando emboscada, atacando a vítima por cima, por um ponto cego, arrancando com os dentes cérebro, ossos e cascos.
Lembrei-me daquele caso contado por Monteiro Lobato, no livro “Cidades Mortas”, do sertanejo apelidado “Resto de Onça”, um caboclo magro, sem o braço direito, sem um olho, sem um pedaço da cara.
Horripilante e cheio de cicatrizes. O narrador pede a Resto de Onça que conte sua história. Ele a narra numa linguagem atraente, retratando com fidelidade a fala regional. Contou que na fazenda de um tal coronel Eusébio havia uma onça-pintada matreira, que atacava o chiqueiro dos porcos. Prepararam então uma caça ao felino com vários cachorros onceiros, entre eles o Brinquinho. Resto de Onça se afastou dos companheiros e, de repente, sentiu uma patada de unha nas costas. O que o salvou foi a coragem do Brinquinho. Chegou então um outro caçador, o nhô Vadô, sogro de Resto de Onça, que ficou paralisado de medo, sem fazer nada para ajudá-lo. Resto de Onça conseguiu pegar a espingarda e introduzir o cano dentro da boca da onça. Depois, apontou para o lado do sogro e o matou de raiva. Virou resto de onça, caco de gente.
A onça também pode ser parda ou preta. No livro “Martim Cererê”, de Cassiano Ricardo, ponto alto da corrente verdeamarelista, epopeia nacional em que índio, negro e branco tomam posse do território e formam um novo país, a onça preta é figura cosmogônica, parte da gênese mítica do povo brasileiro. É ela que come o sol, símbolo do português; come a arara, o elemento indígena, e traz a noite escura que estava escondida no centro do fruto de tucumã. Para mim, onça verdadeira é jaguaretê, é a onça-pintada do mato de minha terra.
O cuiabano João Sebastião elegeu a onça-pintada como seu ícone preferido. Seus quadros são impactantes. Do chão da floresta brotam onças-pintadas, salpicadas de solidão e silêncio. Onças entalhadas em pedras, moringas, sarcófagos, escapando da boca de vulcões. Alta potência expressiva. Já as onças de Lúcia Martins Coelho Barbosa, de Campo Grande, têm textura nos pelos, olhos de esfinge. E o fotógrafo de Florianópolis, o viajante e andarilho Araquém Alcântara, soube capturar com suas lentes instantâneos do focinho à cauda ereta da onça-pintada à beira de um rio de areias douradas, coalhado de peixes. Arte e onça-pintada combinam muito com elegância, ecologia e dramaticidade.
Concentrei-me novamente. Estava tão longe. Uma pequena compra para a sobrevivência e lá se foi a onça-pintada impressa na minha cédula de cinquenta reais.