Fui sempre uma menina do mato, embora criada na cidade. A natureza me fascina, me provoca e me acalma. Tempos atrás, olhando pela janela de um ônibus a caminho do sul de nosso Estado, comecei a registrar, visualmente, quantas tonalidades de verde havia nas matas que acompanhavam a estrada.
Cheguei à conclusão, de modo amadorístico, que essa cor, entre todas as outras, é a que mais possibilita variações de tons, originados pela quantidade de luz do sol que brilha, charmoso, colorindo o mundo.
Encantam-me, sobremaneira, aqueles catálogos das casas especializadas de tintas, em que o castanho do meu olhar, já recuperado por competente oftalmologista tempos atrás, vagueia por entre cores, tonalidades e matizes... Neles encontro românticos e poéticos nomes, criados talvez por funcionários que souberam conservar, escondido dentro de um monte de máquinas de altas tecnologias, aquele sentimento bom e necessário que não nos deixa perder a humanidade.
Assim nasceram Menta e Mel/ Calda de Hortelã / Chá de Ervas / Água Doce / Capim Santo / Folha de Alecrim / Brisa Fresca /Céu de Outono / Vento do Nordeste / Fundo do Mar/Floresta Viva / Mata Preservada / Alto da Serra / Casa na Árvore / Frescor da Fazenda... Chego até a pensar que tanto Chico Buarque quanto Djavan ainda não se deram conta de que esses nomes dariam ótimas composições musicais, semelhantes às suas “Passaredo” e “Pé de Capim”.
Dizem que no mundo –vasto mundo – das palhetas e dos pincéis, a cor azul se relaciona a Yves Klein, o amarelo a Vincet Van Gogh, o branco a Piero Manzoni, o preto a Ad Reinhardt, o dourado a James Lee Byers... Mas não estou aqui para repetir o que o Google registra senão para confessar, mais de meio século depois, um dos meus pecaditos infantis – quem não os teve? – e que está relacionado a uma cor. Mea culpa.
Já conto: era mês de maio. Na Igreja Dom Bosco, a imagem de Nossa Senhora esperava, no altar, as oferendas das flores. Em longa fila, nós, crianças da Cruzadinha, aguardávamos para depositar-lhe aos pés as margaridas, as sempre-vivas, samambaias, rosas-chá e dálias colhidas nos quintais de nossa Infância.
Com uma imensa rosa cor-de-rosa em minhas mãos, eu estava impaciente para entrar triunfante na igreja e caminhar até o altar enfeitado de vaporosos tules e prateadas estrelas de papel. De repente, comecei a olhar aquela rosa. Seu cor-de-rosa explodindo na minha cara, sua corola sorrindo pros meus olhos espantados. Era apenas eu e a rosa. A rosa e eu.
O “Louvando Maria”, cantado em alto e bom som pelos fiéis, emudeceu. Se, por alguns instantes, o céu baixou naquele ambiente cheirando a forte incenso, dentro de mim – menina de 9 anos – pensamentos demoníacos começaram a borbulhar. Será que a Virgem veria essa rosa cor-de-rosa? Sentir seu cheiro? O que seria da flor quando murchasse? Teria um enterro digno? Ou seria juntada às tantas outras murchas e secas para cair no lixão da cidade? Foram segundos, minutos que duraram uma eternidade... Olhei para a Virgem lá no altar e, mesmo distante, a estátua pareceu-me sorrir um riso de compreensão e cumplicidade... Aquela visão bastou para que eu tomasse minha decisão.
Saí da fila da Cruzadinha e deitei cabelo até chegar em casa, não muito longe da igreja. Enchi de água uma licoreira bico de jaca, guardei amorosamente a rosa dentro dela, num gesto maternal de quem coloca um filho no berço, e a levei para meu quarto. Por alguns dias, aquela flor iluminou minha criancice.
A vida passou, muitas foram as vezes em que me ajoelhei diante de um confessionário para contar sobre meus pecados e rezar as penitências ordenadas. Mas o terrível segredo ficou guardado por mais de seis décadas. Revelo-o agora para quem me lê, convicta de que já fui perdoada pela Mãe Santíssima na mesma noite enluarada, de um longínquo mês de maio dos idos 50, em que uma criança travessa e encantada com flores e cores lhe roubou uma rosa cor-de-rosa.
* Professora, poeta, diretora cultural da UBE/MS