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Lucilene Machado: "Arquivo memória versus arquivo esquecimento"

Lucilene Machado: "Arquivo memória versus arquivo esquecimento"

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Hoje eu acordei e fazia frio. Um frio de mentiras antigas, de vozes vorazes, sons estridentes e palavras carregadas por uma semântica triste entrando e saindo dos meus ouvidos. Olhei para o céu e pensei que poderia haver um milagre para me curar de ser tão pouca coisa. Tão pouca sabedoria, tão pouco conhecimento, tão pouco amor. Todas as coisas para as quais eu me empenho, pelas quais eu luto, estão em um lugar onde não consigo chegar. Todos os caminhos falham. Eu bem sei, ainda que não sei, que eu quero alcançar com as mãos o que está à altura da inteligência. 

Coube a mim uma vida vagabunda. Acho linda essa palavra, não sei por que foi carregada com sentidos tão adversos. Vagabundo vem do latim vagabundus, que significa “pessoa que anda sem destino”, ou seja, uma vida sem raiz, que não está cravada em nenhum lugar. Uma vida que me parece leve e livre. Em geral, as raízes chegam muito tarde. Chegam num dia frio, quando se está sozinho, e as pessoas nos parecem estranhas e a vida vagabunda parece se atar aos nossos pés com o peso de um tonel.

Saio de casa com esses pensamentos incongruentes e busco um Café que me sirva pão com manteiga na chapa, um pingado quentinho e um sorriso sincero. Sempre me perguntam de onde sou. Não sou de lugar algum. Na verdade, estou sempre voltando para casa, esteja lá onde esteja essa casa. Aliás, todos estamos voltando. Não sei quem foi que disse, creio que Bourdieu, que a única coisa que se pode fazer sempre é voltar. Mas tenho medo das orações passivas, me parecem perigosas e, sim, há outra coisa que podemos fazer sempre: esquecer. Borges disse que somos aquilo que resolvemos esquecer, embora eu tenha de registrar que, segundo Bobbio, “somos aquilo que recordamos”. 

Hoje, eu fico com Borges e aposto no esquecimento. Esquecimento técnico. Um modo sutil de transferir alguma coisa da nossa unidade significativa para outra unidade não-significativa. Como se descartássemos um arquivo, outrora catalogado em pasta importante, para a lixeira. Uma operação que deveria ser puramente intelectual, mas, na prática, é uma ação que dói. Você arrasta um arquivo da pasta “vida” para o arquivo da pasta “morte”, o que vai esfolar até os canais menos sensíveis de seu cérebro. As reações se assemelham às da loucura. Desperta-se aterrorizado no meio da noite, vendo sombras erguerem-se pelas paredes e a melancolia do mundo correr por suas veias e artérias. Ter náuseas também é normal, o estômago tem ligação com o cérebro. A sensação é a de ter engolido o universo e tê-lo de despejar no vaso.

Escatológica esta crônica, perdão, você só vai vomitar se sentir tudo excessivamente. E é mais provável que sinta, porque a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação. Somos seres confusos cheios de infinito, cheios de forças, as quais não sabemos como empregar, e que podem se transformar em selvageria. 

Entro na cafeteria como quem entra na igreja. Nada de sorrisos sinceros. Vejo os filhos dos filhos dos filhos dos cidadãos negros, se é que já eram cidadãos, lavarem a louça dos filhos dos filhos dos filhos dos cidadãos europeus. Os demais observam futebol em uma tela de TV como se não fossem parte de essa genealogia de filhos dos filhos. Isso me parece tão incongruente, que não sei se vivo num estado de confusão ou de lucidez. Só gostaria que essa dúvida não fosse o principal efeito de nossa civilização, dessa guerra fria que não dá trégua e exige todos os dias meu juízo de valor, mesmo sobre futebol. 

 Ainda não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Sei que almejo a posse, ainda que oblíqua, dos meus sentidos intelectuais. Quero o milagre de ser mais, um pouquinho mais. Que as memórias frias não me despejem no chão. Que as memórias cálidas conservem o cheiro de todos os lugares onde eu estive, que o amor sempre faça parte do meu arquivo “vida” e não me faltem sorrisos sinceros.

*Professora de Teoria Literária / UFMS 

ARTIGO

Produtos livres de desmatamento nas estratégias da União Europeia

11/04/2024 07h30

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O Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento é um entre vários componentes do Pacto Ambiental Europeu (European Green Deal), que tem como objetivo final atingir neutralidade de emissões de gases de efeito estufa em 2050, com um crescimento econômico livre da exploração excessiva dos recursos naturais e sem deixar ninguém para trás.

Trata-se, portanto, de uma peça dentro de um quebra-cabeça bem mais complexo que visa tornar a Europa um continente sustentável e carbono neutro.

Desde 2019, o Pacto Ambiental Europeu apresenta diretrizes que vão sendo gradativamente regulamentadas, cobrindo de energia renovável a produção de alimentos, passando por transporte e construção civil.

Trata-se de um marco legal abrangente que aborda diversas questões ambientais, incluindo o desmatamento, como parte dos esforços da União Europeia (UE) para um novo modelo de economia verde. 

O regulamento para produtos livres de desmatamento, aprovado em 2023, disciplina as atividades dos importadores europeus que passam a ser responsáveis por garantir que os produtos adquiridos não venham de áreas desmatadas depois de 31 de dezembro de 2020.

As restrições entram em vigor no final de 2024. Os importadores são os responsáveis pela implementação das verificações nos países exportadores, as chamadas “due dilligences”. 

As implicações para o Brasil são significativas, pois a UE é o segundo maior comprador dos nossos produtos agropecuários. Enfrentamos sérios problemas de desmatamento ilegal na floresta amazônica, além de questões fundiários e sociais.

Outro ponto importante é que a legislação europeia não faz distinção do que é considerado desmatamento legal ou ilegal. A normativa claramente se refere a desmatamento em geral. 

Esse ponto vem sendo questionado pelo governo brasileiro, alegando que está acima das exigências legais do ordenamento jurídico do país. Argumenta-se que essa normativa representaria uma forma de barreira não tarifária aos produtos do Brasil.

Entretanto, o argumento contrário é de que a UE tem a prerrogativa de estabelecer os critérios para os produtos que farão parte das suas cadeias de suprimento. E, como o objetivo maior é a redução dos impactos ambientais do consumo dos próprios europeus, nada mais lógico do que exigir que seus fornecedores sigam padrões compatíveis com essa ambição.

Importante notar que há fortes reações ao Pacto Ambiental dentro da própria UE, como vimos recentemente nos diversos protestos de produtores rurais no território europeu.

Embora estejam sensibilizando parte da sociedade e postergando algumas limitações, dificilmente a insatisfação dos produtores europeus ou dos governos fornecedores de produtos agrícolas para a Europa terão força para uma guinada nos objetivos de longo prazo da UE.

Parece haver um sério proposito do continente em mudar completamente suas bases de desenvolvimento, mirando a transição para uma economia mais resiliente e de baixas emissões de gases de efeito estufa.

Ao Brasil cabe o desafio de entender essas normativas e entrar em um processo de negociação sério e embasado na ciência. Ainda há grandes lacunas sobre como serão feitas as verificações do desmatamento e, sobretudo, como serão mapeadas as origens de cada lote de exportação.

Precisaremos acelerar nossos investimentos em rastreabilidade e transparência nos processos produtivos, assim como no aprimoramento de plataformas de monitoramento territorial. Tudo isso em consonância e em estreita colaboração com os importadores e agentes da União Europeia.

Ainda estamos em um momento de discussão e entendimento junto aos agentes europeus de como o novo regulamento será implementado no Brasil. Entende-se que será um processo com aprendizado mútuo e um período de adaptação.

Os entes governamentais têm o papel de catalisar essa discussão entre produtores, processadores e exportadores brasileiros para que estejamos prontos para manter a liderança como fornecedores de produtos agrícolas para a União Europeia. 

 

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ARTIGO

Era uma vez em uma escola na Suécia

11/04/2024 07h30

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Depois de anos educando as crianças quase que exclusivamente com recursos digitais, o Ministério da Educação da Suécia começou a perceber alguns sintomas perturbadores nas suas crianças: deficiência na leitura e na compreensão de textos apropriados para a idade, muita dificuldade de escrever e, quando solicitadas, escritas realizadas apenas em caixa alta.

Mas o que mais chamou a atenção foi a percepção de que as crianças também começaram a apresentar dificuldades para expressar o que sentiam, pois lhes faltava vocabulário até mesmo para descrever cenas breves ou relatos de emoções simples.

Muitas dessas manifestações, resultantes da falta de exercício cognitivo e motor, assemelhavam-se a alguns transtornos psicológicos, e não é de se espantar que muitos pais possam ter procurado psicólogos, feito exames ou mesmo ministrado medicamentos, preocupados com a lentidão, o mutismo ou ainda com dificuldade de compreensão de seus jovens filhos.

O governo sueco, diante dessa constatação, resolveu dar uma guinada nas suas orientações escolares e agora estimula fortemente o uso de livros em vez de laptops, como também incentiva a leitura em voz alta, as rodas de conversa e a prática da escrita - inclusive ditados - com o objetivo de reverter o cenário que se desenhava catastrófico para o futuro.

Crianças que não são estimuladas desde cedo em atividades motoras e intelectuais podem ter dificuldades de desenvolvimento profissional na vida adulta, particularmente em um mundo onde a criatividade e a inovação são realidade em todo lugar. 

No último Pisa, divulgado em 2023, o resultado geral dos jovens estudantes suecos foi de 487, ante 499 registrado na edição anterior, de 2018. Em Matemática, a queda foi de 15 pontos e em Leitura, de 10 pontos.

Suficiente para que fizesse um país sério, como a Suécia, acender as luzes amarelas e buscar compreender as razões dessa perda de energia no aprendizado de seus jovens cidadãos, (para além dos efeitos da covid, que afetou de maneira praticamente igual os países participantes).

Uma das medidas que o governo buscou implementar em todas as escolas - embora na Suécia o programa e as orientações pedagógicas não sejam unificadas como no Brasil - foi: menos celular, menos laptop e mais livro, leitura, escrita e conversa. O básico que, desde mais ou menos cinco séculos atrás, tem orientado a ideia do que é ensinar e aprender.

 Lógico que esta constatação não implica em demonizar o uso de tecnologia em sala de aula, mas de usá-la com sabedoria, de forma que ela ofereça o que, de fato, não é possível conseguir por outros meios.

Mal comparando, é como o hábito de muita gente usar palavras em inglês para se referir a coisas ou situações nas quais já existe uma palavra em português perfeitamente cabível. Esse é o mau uso da língua estrangeira. O que não significa que não se deva aprendê-la e usá-la, muito pelo contrário.

A tecnologia compreende um conjunto de ferramentas e habilidades que deve servir para ampliar nossa capacidade de ler, raciocinar, produzir e nos comunicar. Mas, para isso, precisamos antes saber ler, raciocinar, produzir e nos comunicar.

O perigo do uso de celulares e laptops no ensino fundamental é o de diminuir ou mesmo obstaculizar  o desenvolvimento motor e cognitivo das crianças, além de dificultar a expressão de ideias, emoções e socialização, por falta de vocabulário capaz de se fazer entender quando relatar uma experiência.

O fenômeno hikikomori, que se refere aos jovens que abandonam qualquer contato social real e mantêm-se isolados em seus quartos, comunicando-se apenas pelas redes sociais, vem se alastrando por todo mundo, assim como a descrição de novos transtornos psicológicos associados à dificuldade de comunicação e socialização. A saída, porém, pode estar um pouco antes do consultório médico ou do psicólogo. Na boa e velha sala de aula.

 

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