Hoje eu acordei e fazia frio. Um frio de mentiras antigas, de vozes vorazes, sons estridentes e palavras carregadas por uma semântica triste entrando e saindo dos meus ouvidos. Olhei para o céu e pensei que poderia haver um milagre para me curar de ser tão pouca coisa. Tão pouca sabedoria, tão pouco conhecimento, tão pouco amor. Todas as coisas para as quais eu me empenho, pelas quais eu luto, estão em um lugar onde não consigo chegar. Todos os caminhos falham. Eu bem sei, ainda que não sei, que eu quero alcançar com as mãos o que está à altura da inteligência.
Coube a mim uma vida vagabunda. Acho linda essa palavra, não sei por que foi carregada com sentidos tão adversos. Vagabundo vem do latim vagabundus, que significa “pessoa que anda sem destino”, ou seja, uma vida sem raiz, que não está cravada em nenhum lugar. Uma vida que me parece leve e livre. Em geral, as raízes chegam muito tarde. Chegam num dia frio, quando se está sozinho, e as pessoas nos parecem estranhas e a vida vagabunda parece se atar aos nossos pés com o peso de um tonel.
Saio de casa com esses pensamentos incongruentes e busco um Café que me sirva pão com manteiga na chapa, um pingado quentinho e um sorriso sincero. Sempre me perguntam de onde sou. Não sou de lugar algum. Na verdade, estou sempre voltando para casa, esteja lá onde esteja essa casa. Aliás, todos estamos voltando. Não sei quem foi que disse, creio que Bourdieu, que a única coisa que se pode fazer sempre é voltar. Mas tenho medo das orações passivas, me parecem perigosas e, sim, há outra coisa que podemos fazer sempre: esquecer. Borges disse que somos aquilo que resolvemos esquecer, embora eu tenha de registrar que, segundo Bobbio, “somos aquilo que recordamos”.
Hoje, eu fico com Borges e aposto no esquecimento. Esquecimento técnico. Um modo sutil de transferir alguma coisa da nossa unidade significativa para outra unidade não-significativa. Como se descartássemos um arquivo, outrora catalogado em pasta importante, para a lixeira. Uma operação que deveria ser puramente intelectual, mas, na prática, é uma ação que dói. Você arrasta um arquivo da pasta “vida” para o arquivo da pasta “morte”, o que vai esfolar até os canais menos sensíveis de seu cérebro. As reações se assemelham às da loucura. Desperta-se aterrorizado no meio da noite, vendo sombras erguerem-se pelas paredes e a melancolia do mundo correr por suas veias e artérias. Ter náuseas também é normal, o estômago tem ligação com o cérebro. A sensação é a de ter engolido o universo e tê-lo de despejar no vaso.
Escatológica esta crônica, perdão, você só vai vomitar se sentir tudo excessivamente. E é mais provável que sinta, porque a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação. Somos seres confusos cheios de infinito, cheios de forças, as quais não sabemos como empregar, e que podem se transformar em selvageria.
Entro na cafeteria como quem entra na igreja. Nada de sorrisos sinceros. Vejo os filhos dos filhos dos filhos dos cidadãos negros, se é que já eram cidadãos, lavarem a louça dos filhos dos filhos dos filhos dos cidadãos europeus. Os demais observam futebol em uma tela de TV como se não fossem parte de essa genealogia de filhos dos filhos. Isso me parece tão incongruente, que não sei se vivo num estado de confusão ou de lucidez. Só gostaria que essa dúvida não fosse o principal efeito de nossa civilização, dessa guerra fria que não dá trégua e exige todos os dias meu juízo de valor, mesmo sobre futebol.
Ainda não sei se a vida é pouco ou demais para mim. Sei que almejo a posse, ainda que oblíqua, dos meus sentidos intelectuais. Quero o milagre de ser mais, um pouquinho mais. Que as memórias frias não me despejem no chão. Que as memórias cálidas conservem o cheiro de todos os lugares onde eu estive, que o amor sempre faça parte do meu arquivo “vida” e não me faltem sorrisos sinceros.
*Professora de Teoria Literária / UFMS