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José Neres: "O medo morde nossos calcanhares"

Professor, membro da AML e da Sobrames

Redação

25/09/2018 - 02h00
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Os mais velhos contam que em um tempo talvez não muito distantes, depois de horas e mais horas de boa conversa nas calçadas ou na porta das casas, as pessoas se recolhiam e iam dormir. Às vezes esqueciam portas e janelas abertas, e mesmo assim tinham um sono tranquilo e sem sobressaltos. Naquela época, quando, durante a conversa, aparecia alguém na esquina ou no final da rua era a certeza de que chegava mais uma pessoa para engrossar o grupo ou garantia de que haveria mais piadas, mais “causos” e muitos outros minutos de boa conversa.

Hoje, nossa sociedade está muito diferente. Todos nós somos prisioneiros de nossos próprios lares. Os vizinhos são quase sempre desconhecidos com quem muito mal trocamos um “oi” ou um passageiro “bom dia”, “boa tarde, “boa noite”. Aquela conversa animada na calçada não existe mais, e as ruas se tornaram um deserto urbano que tem que ser atravessado com calma e sem a certeza de que conseguiremos chegar ao destino premeditado. Todos os moradores se trancam em casa e têm medo até mesmo do menor ruído que possa ser similar a tiro, explosão ou grito.

Quando não se tornam um deserto, nossas ruas se assemelham a uma selva de asfalto (esburacado) e concreto, infestada de animais ditos civilizados e até mesmo escolarizados que espreitam os incautos transeuntes para deles, sem piedade, tirar-lhes o suor, o sangue, a vida. Depois, fogem e começam a perseguir novas vítimas em uma interminável carnificina noticiada todos os dias nas páginas policiais. Homicídios, latrocínios, estupros, sequestros e outros crimes tornaram-se tão corriqueiros que nem sempre ocupam lugar de destaque nos noticiários. A barbárie tornou-se parte de nosso cotidiano.

Hoje, quando alguém desponta no início da rua ou na esquina, não é mais motivo de júbilo, mas sim de preocupação. A simples imagem de um estranho que se aproxima já é motivo mais que suficiente para que os poucos aventureiros que ainda se arriscam a ficar nas calçadas decidam entrar em suas humildes e inseguras fortalezas em busca de um refúgio. Porém não existe mais um refúgio seguro e, dentro ou fora de casa, todos vivem em perigo constante.

Muros altos, cercas elétricas, alarmes, portões reforçados de alumínio e câmeras de segurança agora fazem parte da fachada da maioria dos lares, que, rapidamente, deixaram de ser apenas residências, para se constituírem em refúgios emergenciais, porém sem a menor garantia de que dentro deles alguém esteja seguro. Da mesma forma, os carros deixaram de ser meros meios de transporte e se converteram em extensão da segurança que se deseja em casa. Revestimento fumê, travas elétricas e blindagem tornaram-se itens obrigatórios para quem almeja chegar a sua residência com o menor número possível de sustos. Isso sem contar com uma obrigatória apólice de seguro, que garanta reverter pelo menos um pouco dos prováveis prejuízos materiais, já que os danos morais e psicológicos tendem a ser irreversíveis.

Já não temos mais o prazer de circular livremente pelas cidades. Andamos sobressaltados e a insegurança é nossa companheira inseparável. Estamos condenados a viver em prisões que construímos para serem lares, acorrentados ao medo que morde nossos calcanhares em cada movimento mais brusco. E, enquanto observamos a rua, agarrados às grades de nossas casas, das escolas, dos estabelecimentos comerciais, somos obrigados a conviver com o sorriso cínico dos marginais que, sentindo-se senhores do mundo, esperam mais uma vítima e dela tiram ao mesmo tempo o dinheiro, a dignidade e a esperança de um mundo melhor.