O julgamento por unanimidade no STF do RE n° 592.581/RS (13/8), com repercussão geral para casos semelhantes em todas as esferas, reforçou o divisor de águas entre o discricionário e o obrigatório em relação ao sistema penitenciário brasileiro. A condição de preso, conquanto prive alguns direitos, não os elimina totalmente, sobretudo quanto aos seus direitos fundamentais básicos, que cabem ao Estado preservá-los obrigatoriamente.
Julgamento emblemático que, de fato, tocou na “ferida” do sistema prisional, reforçando aquilo que está previsto na Constituição Federal como direito fundamental do preso, mas que, não obstante, o Poder Executivo sempre se recusou a cumpri-lo adequadamente, sob o pretexto da “cláusula da reserva do possível”, ou seja, se tiver recurso (dinheiro) cumpre, do contrário, não!
Em síntese, a questão levantada nesse julgamento consistiu na indagação se o Poder Judiciário pode obrigar o Poder Executivo a construir estabelecimento prisional adequado a assegurar a integridade física e moral dos presos. A origem desse julgamento foi uma ação civil pública do Ministério Público do Rio Grande do Sul que visava obrigar o Estado a reformar o Albergue de Uruguaiana, o qual, em razão da sua precariedade, já havia sido causa da morte de preso.
A decisão da comarca de origem foi no sentido de determinar ao Executivo que realizasse a reforma. O TJ daquela unidade da federação, em razão de recurso, reformou a decisão sob o argumento de que “não cabe ao Judiciário determinar que o Poder Executivo realize obras em estabelecimento prisional, sob pena de ingerência indevida em seara reservada à administração”.
Com o julgamento do STF, não obstante a previsão da nossa Lei Maior, a “farra” interpretativa que imperou nos nossos tribunais por muito tempo, tal qual a do TJ/RS, acabou! E isso forçará o Poder Público, sobretudo o Executivo, a cuidar melhor do sistema prisional, que, incontestavelmente, é o “calcanhar de Aquiles” do sistema penal e consequentemente da repressão à criminalidade.
É do conhecimento público que o nosso sistema prisional pouco difere das velhas “masmorras” da época medieval (prisões normalmente situadas em pisos inferiores de castelos, com cômodos escuros e lúgubres, sem abrigo do sol, e que tinham como função reter prisioneiros, muitas vezes por longos períodos).
O superavit de presos – para alguns, o sistema já ultrapassa 700 mil pessoas – em relação ao número de vagas existentes, inferior a 300 mil, ainda é associado às péssimas condições dos nossos presídios em geral. O presídio central de Porto Alegre-RS que o diga. É considerado o pior do País e revela com exatidão esse lamentável quadro. Aliás, foram justamente as condições degradantes do nosso sistema prisional que serviram como justificativas para a Justiça italiana negar a extradição do ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato.
Não foi por acaso a afirmação do ministro Celso de Mello nesse julgamento de que o sistema penitenciário brasileiro “vive em um mundo de ficção, dominado pela indiferença, descaso e desprezo por parte do Poder Público”. O que reforça a assertiva de que a criação de condições humanas nos presídios não pode ser uma escolha ou faculdade do Executivo. Não há de se falar em discricionariedade quando se trata de direitos fundamentais. Com efeito, o Judiciário, como guardião dos direitos fundamentais, não só pode como deve exigir que eles sejam cumpridos. E o papel do Ministério Público, como defensor do povo, é importante, dando-lhe, inclusive, legitimidade para exigir o seu cumprimento.
A propósito, foi parecer do procurador-geral da República quando afirma que “não cabe aplicação da cláusula da reserva do possível que resulte em negativa de vigência de núcleo essencial de direito fundamental. O Estado deve garantir proteção do mínimo existencial do direito fundamental de respeito à integridade física e moral dos presos. Núcleo essencial intangível a ser assegurado, independentemente de condições adversas, limites financeiros ou colisão com outros direitos fundamentais. Tem legitimidade o Poder Judiciário para determinar”. Porém, em caráter emergencial, como constou do julgamento.
É importante ressaltar que o julgamento, ao contrário de eventuais interpretações apressadas, não visou implantar regalias e privilégios para pessoas presas, mas assegurar-lhes “o mínimo necessário à manutenção da dignidade e de condições de sobrevida”.