Vereadores parecem enfrentar amnésia coletiva sobre a crise e, esquecidos de suas atividades, voltam os olhos para os próprios bolsos
Brasil ainda busca se recuperar daquela que foi a maior crise econômica da história. Uma tempestade com longos anos de duração e que deixou o rastro de desemprego, inflação e instabilidade da máquina pública. De prefeituras de pequenas cidades do interior à União, o temporal causou devastação e expôs as feridas provocadas por décadas de má gestão. O olho do furacão já passou. Só que, antes mesmo de dissipada por completo, a maior recessão da história aparentemente já foi esquecida pelo Legislativo de Campo Grande. Como em um caso de perda de memória recente, vereadores da Capital – com duas únicas exceções – parecem ter se esquecido do impacto causado por anos de crise e já estão dispostos a jogar pelo ralo o dinheiro público que nem voltou a cair. Palavras como sacrifícios, equilíbrio fiscal e abnegação ficaram só na memória do povo, o mais abatido pela crise econômica, seja pela perda do emprego ou pela queda na qualidade de vida e dos serviços básicos. Para estes, cujos traumas ainda estão vivos na memória, é chegada a hora de voltar os olhos para o que acontece na Câmara de Vereadores, principalmente nesta terça-feira. Depois de aceitar todas as medidas adotadas pelos governos em nome do equilíbrio financeiro e após tantos obstáculos superados, o campo-grandense sofre mais um duro golpe: em vez de aprimorar a gestão do dinheiro público, é dada a largada a uma corrida para aumentar os próprios ganhos entre os poderes, em uma clara demonstração de irresponsabilidade e descaso com a população.
No período em que se comemora a leve brisa de otimismo, enquanto o País tenta se reerguer e o campo-grandense ainda luta para encontrar um emprego, vereadores da Capital votaram por um reajuste que supera o que boa parte das famílias ganha em um único mês. Se o pacote de aumentos for aprovado em segunda votação, o salário mensal dos 24 vereadores de Campo Grande vai saltar de R$ 15,031 mil para R$ 18,991 mil em 2021, fora a série de benefícios que os nobres parlamentares já têm direito, um dos maiores rendimentos do Brasil.
Pela proposta, que vincula ao rendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), o salário do prefeito de Campo Grande salta para R$ 28 mil, no próximo mês, e chega a 35,2 mil, em 2021. Com isso, também é criado o efeito cascata, aumentando salários de vice-prefeito, secretários e auditores fiscais, como mostra reportagem de hoje do Correio do Estado.
Mas a insensatez mostra que não tem limites. Projeto de lei, em tramitação no Congresso Nacional, propõe afrouxar a Lei de Responsabilidade Fiscal dos municípios em caso de perda de receita. Com isso, uma das poucas ferramentas que vinham ajudando municípios a não mergulhar em dívidas gestão após gestão corre o risco de perder força. Na visão do nosso congresso, a regra básica de não gastar mais do que arrecada– seja para a economia do lar ou para gerir uma grande empresa – não é aplicável ao setor público. Nesse mundo paralelo de irresponsabilidade que propõe o projeto de lei de flexibilidade da LRF no momento de crise, os excessos de gastos são “aceitáveis”.
É como se a crise, em vez de deixá-los mais sábios, tivesse um efeito contrário sob nossos parlamentares. Como explicar à população que, depois de toda a turbulência, uma das primeiras medidas após (frágil) estabilidade será o aumento salarial dos que estão no poder. O reajuste dos ministros do STF não justifica as decisões. Assim como a queda na receita não torna aceitável estourar o limite de gastos com pessoal. A aprovação desse pacote de medidas vai além da perda de memória, trata-se da perda de respeito com o dinheiro público.