Criada para ser um lugar onde as pessoas exercem o direito de ir e vir, na antiga rodoviária – povoada por usuários de droga –, lamentavelmente, a passagem é só de ida.
As fraturas expostas sempre são as piores de serem vistas. Elas chocam quem as olha. Mesmo os mais acostumados a lidar com o corpo humano, como os profissionais de saúde, ficam impressionados com a latência de um ferimento como este. É a vida sendo exposta em seu estado bruto, cujas consequências, inclusive, poderão ser a perda da mesma em alguns casos.
A visão das feridas sempre é desagradável aos olhos humanos. É difícil observar atentamente os detalhes do corpo vivo machucado. O mesmo também se aplica a espaços geográficos, como casas, cidades e até mesmo ecossistemas.
Campo Grande atualmente tem sua ferida – praticamente uma fratura exposta. Trata-se da antiga estação rodoviária, no Bairro Amambaí. De um lugar criado para que pessoas exercessem plenamente seu direito de ir e vir, transformou-se em um edifício onde muito dos que vão não voltam. Talvez alguns até se mantenham vivos, pelo menos o corpo. Mas, entregues ao vício em drogas que degenera o que há de mais de belo na humanidade, morrem a cada tragada de crack.
Nesta edição, mostramos aos nossos leitores o trabalho realizado pela Polícia Militar e pela Guarda Municipal no entorno da antiga rodoviária. O trabalho dos policiais, que também foi estendido ao Centro de Triagem do Migrante (Cetremi), foi como enxugar gelo. A maioria destes moradores de rua e usuários de droga é levado para a delegacia, mas volta de lá rapidamente e, em muitos casos, antes mesmo que os próprios policiais. O motivo é que a maioria deles não cometeu delitos graves para ser considerada criminosa. São pessoas doentes, que precisam de tratamento.
O Cetremi, que foi criado para ser um local de transição da situação de rua para um rumo na vida pessoal, infelizmente, tornou-se impotente diante dos problemas relacionados ao uso de drogas. Muitos destes usuários, que vagam pelas ruas do Centro de Campo Grande nas 24 horas do dia, têm família, mas não têm contato com ela. Nada os detém, nem mesmo a lei.
A internação compulsória ainda é um tabu. Mas tabus foram criados para serem quebrados, e os motivos que lhe dão causa, para serem discutidos com racionalidade e bom senso. A discussão, porém, precisa ter um objetivo: curar o usuário de drogas e retirá-lo das ruas.
Quem está diariamente nas ruas, deixando de comer e pedindo dinheiro para comprar uma pedra de crack, não tem consciência de sua liberdade individual ou mesmo da dignidade da pessoa humana prevista em lei. Antes mesmo de ser prisioneiro – como muitos consideram, o que às vezes impede a cura – de uma clínica, eles são prisioneiros de uma substância entorpecente. Na rodoviária onde vivem, a passagem, ao que tudo indica, é só de ida.