Já agradecendo a Deus, o compositor italiano Salieri acabara de tocar para a corte real uma das canções mais belas já compostas por ele, quando irrompe pela sala um jovem hiperativo e irresponsável. Ele ouve a canção e diz ser capaz de tocá-la apenas ouvindo-a aquela única vez. Todos riram, mas o jovem não só a repete, nota por nota, como também dá a ela uma versão divinamente melhor. Todos ficaram atordoados e Salieri pragueja contra Deus porque ele, um compositor incansável, não havia sido agraciado pelo talento que Deus sarcasticamente concedera a um jovem inconsequente. É claro, falo de Mozart. Esta cena está no excelente filme Amadeus, mas nos dá a falsa impressão que Mozart tinha apenas talento e nada mais.
Na verdade, Mozart fora compelido a trabalhar exaustivamente a música quando criança pelo seu ganancioso pai, com o objetivo de transformá-lo numa espécie de estrela para as cortes reais. Mozart portanto, parece ter sido o feliz encontro entre a capacidade inata e o ambiente favorável. E é exatamente esta a ideia que a genética e a ciência cognitiva nos dão sobre quem nós somos atualmente: uma combinação de uma miríade de fatores genéticos e ambientais interagindo não se sabe como.
Na nossa espécie é ainda mais complexo por termos um encéfalo capaz de escolher destinos além do pré-determinismo biológico. E uma coisa é certa, esta miríade de fatores gera uma grande diversidade de indivíduos e, embora alguns setores da sociedade insistam em querer nos tornar semelhantes, sempre nascerão pessoas diferentes. Estes setores ainda acreditam que nascemos como uma tábula rasa e que a cultura é quem nos molda. Eis dois exemplos: o comunismo soviético e a religião judaico-cristã. É estranho notar que, embora fossem antagônicos no passado, eles tinham algo em comum: a crença que se possam moldar pessoas através do doutrinamento. O comunismo apostou que, destruindo as igrejas, as pessoas deixariam de ser religiosas. Um erro colossal, basta um olhar sobre a atual Rússia. Já a religião judaico-cristã acredita que, condenando o homossexualismo, as pessoas se converteriam ao heterossexualismo ou que, pelo menos, não deveriam praticar o primeiro.
O fato é que estas tentativas não são só vãs, mas causam dores e angústias incalculáveis em quem sofre este tipo de "homogeneização". Será que estes líderes religiosos têm noção do que causam nas pessoas marginalizadas e naqueles que os rodeiam? E outra: quem lhes delegou poderes para gerir o destino de outras pessoas? Recentemente o Papa condenou o homossexualismo, chegando ao absurdo de sugerir que ele é tão grave quanto destruir a floresta tropical. Quem ele pensa que é para querer gerenciar o que você faz ou deixa de fazer em relação ao sexo? Ele se acha uma espécie de antecâmara para o Todo-poderoso? Basta destas estruturas arcaicas de poder. Não consigo aceitar porque ainda damos ouvidos a elas em pleno século XXI. Graças aos esforços do feminismo e do movimento negro na década de 60, hoje se pode colher os bons frutos da convivência pacífica da diversidade, embora ainda hajam espinhos para serem arrancados. No front de batalha está agora o movimento do orgulhoso gay que têm tido relativo sucesso na árdua empreitada de buscar seu lugar de direito na sociedade. Creio que em poucas décadas o preconceito contra eles estará bastante arrefecido.
Restam ainda os ateus que, segundo uma pesquisa brasileira de 2007, são as pessoas mais vitimadas pelo preconceito. Esta pesquisa demonstrou que 84% aceitariam votar em um negro para presidente; 57%, em uma mulher; 32%, em um homossexual e apenas 13% votariam em um ateu. Mas gostem as pessoas ou não, a ciência tem nos mostrado o óbvio: sempre nasceram e sempre nascerão pessoas diferentes. Eu o convido então a aceitar estas diferenças não só porque elas sempre existirão, mas também porque causamos sofrimento quando queremos, em vão, enfiar todas as pessoas pelo mesmo gargalo. Que pelo menos se tolere por conta de um bem maior: a felicidade que as pessoas sentem quando são avaliadas apenas pela sua capacidade e não pela cor da sua pele ou pelas suas escolhas sexuais ou intelectuais. Sempre acreditei que o preconceito é irmão da ignorância e fico pensando o quanto de sofrimento teríamos poupado se melhor compreendêssemos sobre o que nós realmente somos: diferentes. Por fim, deixo uma pergunta para reflexão ao mais irredutível leitor: será que é tão difícil entender que o custo da tolerância é trivial se comparado ao ônus do preconceito?
Sérgio Roberto Posso, Prof. Dr. da UFMS/Campus de Três Lagoas/MS E-mail: [email protected]