11 MAR 10 - 08h:01DRª ÂNGELA MARIA COSTA - PROFESSORA DA UFMS
No dia 28 de fevereiro, em pleno século XXI, na capital do
nosso Estado, morreu uma menina de apenas três anos, vítima
de espancamento da mãe e do padrasto. Uma criança foi assassinada
debaixo do nosso nariz, quase às nossas vistas! E eu
pergunto: culpa de quem? Os fatos conduzem a culpabilização
dos dois. Para mim, eles foram os instrumentos, mas, não pude
eximir-me e deixar de pensar na conivência de todos nós. Não
adianta nos esgueirarmos dessa culpa. Nossos olhos não viram
os hematomas anunciando seu destino, nossos ouvidos não ouviram
seu choro. Viveu solitariamente sua dor! Pagamos nossos
impostos, encolhemo-nos em nosso mundinho e deixamos as
coisas acontecerem, pensando que vivemos em um país democrático.
Iludimo-nos acreditando que as instituições organizadas
cumprem com seus deveres. Isso não é verdade!
Para quem não sabe, o Brasil tem um dos melhores instrumentos
legais do mundo de proteção à criança e ao adolescente:
o Estatuto da Criança e do Adolescente. A Lei n. 8.069, de 13
de julho de 1990, representa um marco histórico nos deveres e
direitos das crianças e adolescentes. Fomos capazes de elaborar
a MELHOR legislação, mas, vinte anos depois, ainda não fomos
capazes de executá-la. E é este documento que dá fundamento
legal às instituições que trabalham com a rede de proteção à
criança. Embora coloque a família como principal responsável,
não afasta o Estado e a sociedade de seus deveres com a infância,
porque institucionaliza um conjunto de normas. Aí é que começa
a nossa responsabilidade, e, portanto, nossa cumplicidade no
assassinato de Rafaela. Pois, como cidadãos, cada um de nós tem
o dever de cobrar do poder público o que as legislações pertinentes
à infância estabelecem. Somente quando tomamos para
nós um problema que, aparentemente, não é pessoal, deixamos
de ser cúmplices e coniventes. E é aí que A Aliança pela Infância
– uma organização de abrangência mundial - se posiciona.
No dia 03 de março, em nome da coordenação regional do
Núcleo da Aliança pela Infância, tomamos a iniciativa de provocar
uma reunião de urgência, para mais adequadamente, nos
inteirar do lamentável fato ocorrido. Além de alguns membros
da Aliança, compareceram o Procurador da Infância, o Presidente
do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente e duas conselheiras tutelares do Conselho Tutelar
Norte, que também atenderam a criança. Essa foi uma reunião
totalmente filmada. Cada um fez e teceu suas considerações a
respeito da gravidade do tema. Pudemos concluir que a Rede de
Proteção das crianças vitimizadas em Campo Grande, apesar de
institucionalizada, NÃO FUNCIONA!
Não funciona, porque tudo que se refere à infância, aqui,
ainda é menosprezado; sem importância, de menor valor. Nenhum
político demonstrou indignação com a morte de Rafaela.
E essa não foi uma morte comum, a criança esteve frente a frente
com inúmeros profissionais que atuam nessa rede, antes do seu
desenlace. Foi entrevistada por três psicólogos, examinada pelo
médico legista, foi vista pelo delegado da Delegacia de Proteção
à Criança e Adolescente e conselheiras tutelares. Na Assembleia
Legislativa sequer foi mencionado algum comentário sobre essa
morte, e, talvez, também, tenha sido assim na Câmara Municipal.
Cadê nossos representantes; aqueles que devem falar e agir
por nós? Será que ainda nos lembramos quem são eles? Alguma
vez nós cobramos a sua ação?!
Eu estou indignada. Indignada porque sei que a lei nº 4.503,
de 03 de agosto de 2007, aprovada pela Câmara Municipal, no
Art. 5, do Capítulo I – Da Instituição e da Instalação do Conselho
Tutelar no município – estabelece que: O Município de Campo
Grande observará as necessidades de demanda, poderá criar 1
(um) Conselho tutelar a cada 200.000 (duzentos mil) habitantes.
E aí eu pergunto: Será que o problema está no tempo do verbo?!
Poderá significa não precisa? Estou indignada porque, agora,
com mais de 800 mil habitantes, temos, apenas, 2 (dois) Conselhos
Tutelares para atender a demanda. Ironicamente, os Conselhos
Tutelares Norte e Sul encontram-se instalados no mesmo
lugar! São dez conselheiros tutelares trabalhando em condições
precárias para uma população de 800 mil habitantes!
Indignada porque, buscando os meus arquivos encontrei
uma notícia publicada em um jornal da cidade, datado de 04 de
outubro de 2005, dizendo: Prefeitura não deve cumprir decisão
judicial que obriga o município a aumentar o número de Centros
de Educação Infantil (CEINFs). A sentença DETERMINAVA que
a prefeitura atendesse 80% da demanda reprimida nos CEINFs,
e que construísse 33 (trinta e três) creches para atender 8,4 mil
crianças. A sentença proferida no dia 18 de fevereiro de 2004
pela juíza da 1ª Vara da Infância e da Juventude, na época, Maria
Izabel de Matos Rocha, NÃO foi cumprida até hoje! A prefeitura
recorreu e na época estava aguardando a decisão final do Supremo
Tribunal Federal. A alegação do poder executivo municipal
era de que o aumento do número de vagas não estava previsto
no orçamento da prefeitura. Traduzindo: não estava prevista no
orçamento uma obrigação municipal - determinada pela Constituição
- com relação ao direito da criança cidadã brasileira.
Indignada estou, porque, agora, depois da morte de Rafaela,
recorri à leitura da Lei Orçamentária do Município para 2010
e lá, também, não há previsão orçamentária, tanto para a ampliação
e instalação dos conselhos, quanto para a construção
dos 33 CEINFs. Enfim, a infância campo-grandense está absolutamente
abandonada e à mercê da incompetência do poder
público municipal e de toda sua (ineficiente e desmantelada)
rede de proteção à infância.
Entendo que a morte de Rafela poderia ter sido evitada. Se
toda a Rede de proteção tivesse devidamente aparelhada, com
profissionais capacitados e competentes e com condições mínimas
de trabalho teriam visto e identificado as dores de Rafaela.
Se Rafaela estivesse matriculada em uma instituição de educação,
poderia ter sido salva dos seus algozes. Alguém poderia ter
diagnosticado os maus tratos com antecedência.
O direito de Rafaela à proteção e à vida lhe foi usurpado! Só
posso, com pesar, dizer que ficou muito claro em nossa reunião
que não podemos nos alienar. Basta! Vamos partir para a ação. É
nosso dever, enquanto porta voz dos direitos da criança, saber
quais os trâmites dessas duas ações: a da ampliação do número
de conselhos tutelares e a construção dos 33 – trinta e três
– CEINFs, em nossa capital.
Por tudo isso, pela ineficiência do Estado, pela incompetência
da Rede Municipal de proteção à Criança, pela omissão da
sociedade, somos todos cúmplices na morte de Rafaela.