Falar no plural, neste caso, é preciso. Era um homem de
muitos amigos. Em São Paulo, no Brasil e no mundo.
Deixou-nos no último domingo, aos 95 anos, em São Paulo.
De Fernando Henrique Cardoso a seu Joaquim, seu motorista,
todos o admiravam e respeitavam.
Era, sem dúvida, a criatura mais gentil que conheci. Dos
poucos para quem ser era muito mais importante que ter.
Tive o privilégio de ser seu amigo. Posso dizer isso de boca
cheia, baseado nas constantes manifestações de carinho e respeito
que dele recebia.
Mas, o mais gratificante mesmo era observá-lo e admirar
sua lhaneza na condução das situações do cotidiano.
A pouca convivência que com ele tive foi muito proveitosa.
A cultura foi a cola que nos uniu.
Tudo começou em 91, por aí, quando, escalado pelo poeta
Manoel de Barros, em uma das nossas caminhadas diárias, fui,
apreensivo, confesso, buscar o grande empresário (que eu como
jornalista já conhecia e admirava) no Aeroporto de Campo
Grande-MS.
Foi amor à primeira vista...
No caminho para a cidade pude exercer plenamente o meu
jeito alegre e brincalhão de ser.
Veio a Campo Grande para conhecer Manoel de Barros pessoalmente,
pois já era seu grande admirador, e propor a edição
de um livro/homenagem.
Nos dias que permaneceu em Campo Grande com Dona Guita,
uma neta e o jornalista João Borges, de Brasília, fizemos de
tudo. Passeios pela cidade e na fazenda do poeta no Pantanal,
churrasco, e jantares em restaurantes.
Fui o cicerone desta divertida aventura cultural. Na última
página a explicação: “Este é o Livro das Ignorãças que Manoel de
Barros escreveu em Campo Grande e um editor bissexto paulista
publicou em homenagem ao poeta. Desta edição especial foram
tirados 300 exemplares como miolo em papel couchê fosco 150
gr. da Suzano e sobrecapa em papel canson miteintes 160 gr,
numerados e assinados pelo autor. O projeto gráfico foi de José
e Diana Mindlin, (...). Acabou-se de imprimir em São Paulo (...),
em outubro de 1993”.
Pela distância, pela falta de tempo do Mindlin (então em
plena atividade empresarial) e pela incompetência assumida
do poeta em lidar com assuntos de ordem prática, fui nomeado
intermediário da execução do Projeto.
Depois do vaievem de originais, bonecos e provas, finalmente
chegaram os livros. Busquei os 300 exemplares no Aeroporto
e os levei à casa do poeta para serem assinados e numerados.
Pediu de 10 a 15 dias para dar conta do recado (ele sempre fez
isso, pede um tempo muito maior que o necessário, por garantia
diz. Com quatro ou cinco dias pede para alguém ligar avisando
que a tarefa está pronta.) Desta vez foi diferente. Com dois dias
me ligou, pessoalmente (o que pouco fazia), para dizer que havia
encontrado dois erros graves (nas páginas 13 e 16) e que iria
corrigi-los um a um, à mão. E corrigiu... Em menos de 10 dias
foram mandados de volta.
Em poucos dias recebi seis exemplares para meus familiares.
O meu exemplar tem duas dedicatórias:
Ao caro Pedro Spindola,
1º para agradecer seus cuidados e sua amizade
2º para agradecer a sugestão do título Os Deslimites da
Palavra
Não tem terceiro
Um abraço para Arilma, filhotes e a você, com afeto.
Seu amigo Manoel
Em 11.11.93.
A outra:
Ao caro Pedro, que participou tanto da gostosa aventura
desta edição, o abraço amigo da Diana e do José.
Em 9.XII.93.
Este episódio foi o início de uma bela e duradoura amizade,
repleta de momentos gratificantes.
Estive algumas vezes na sua biblioteca de raridades, a maior
particular do país, da qual doou parte – os 45 mil volumes da
Coleção Brasiliana. Sempre perguntava se eu não gostaria de
dar uma olhada em algum livro. eu respondia que sim, desde
que pudesse passar uns trezentos dias lá dentro.
Fomos juntos à Bienal do Livro de São Paulo. Foi um gratificante
sufoco... Levamos umas seis horas para atravessar o
pavilhão. Todos o cumprimentavam e ele, solene, a todos me
apresentava.
- Este é o Pedro Spindola, um amigo, jornalista do Mato
Grosso do Sul. Culminou com o Bispo sul-africano Desmond
Tutu.
Nunca vi tanta gentileza em uma pessoa!!!
Um dia fui convidado para almoçar em sua casa. Conversamos
bastante, estivemos na biblioteca e nos deliciamos com
a comida simples e gostosíssima de sua cozinheira mineira de
muitos anos.
Ao me despedir, ele chamou o seu Joaquim e pediu que ele
me levasse ao Aeroporto. Fiquei sabendo de histórias e gestos
inacreditáveis daquele homem. Como ainda faltava muito tempo
para o voo, pedi que me deixasse num shopping. Deixou a
conta-gosto. Queria por tudo esperar... Perto da hora fui para
um ponto de ônibus – tinha tempo de sobra – e me informei
sobre qual me levaria até lá. Sentei e retirei da pasta o livro
que havia acabado de ganhar, Uma Vida Entre os Livros – Reencontros
com o Tempo, e comecei a folheá-lo. Senti atrás de
mim alguém olhando... Era um cavalheiro distinto, de terno,
que perguntou se era o novo livro do José Mindlin. Antes que
eu respondesse, continuou dizendo que queria comprá-lo mas
não estava conseguindo e quis saber onde eu havia conseguido.
Respondi que havia recebido do próprio Mindlin horas antes.
Naquele exato instante apareceu o ônibus que me levaria ao
Aeroporto... Pulei dentro, com a sensação de que o homem não
acreditou na minha história...
Por tudo isso, posso dizer que José Mindlin foi meu amigo.
Meu e de milhares e milhares de pessoas aqui e pelo mundo afora,
foi muito amigo da cultura e, principalmente, dos livros.