Maria Clara usa de toda
a sua razão para fugir da clínica
psiquiátrica na qual foi
lacrada à revelia. Já Eugênia
jaz delirante na cama após o
acidente de Abel. Antônia não
se martiriza por sufocar o pai
idoso com um travesseiro. Antônio
Carlos trava uma batalha
com ratos furiosos que tentam
devorar seus miolos, enquanto
Alaíde persegue borboletas até
tornar-se, enfim, uma delas.
São encontros com a loucura,
em toda a sua diversidade,
suas fúrias e disfarces, que a
autora Cláudia Belfort revela
no recém-lançado “Aqueronte
- O rio dos infortúnios”. A obra
reúne 13 contos independentes
com angústias de pessoas com
vários tipos de distúrbios mentais,
dos doentes de amor aos
de hospício, dos depressivos
aos raivosos, loucos sociais ou
suicidas, que desdenham do
limite do corpo na contramão
da Imigrantes.
O título faz menção à mitologia
grega, que apresenta o
leito do Rio Aqueronte como
palco da travessia das almas
rumo ao inferno, ao submundo
dos mortos. “Para não pirar,
pirei na literatura”, resume com
bom humor a editora-chefe do
“Jornal da Tarde”, que, quando
o pai adoeceu, dispôs-se a despejar
a dor no papel e tornou-se
autora das histórias, ilustradas
uma a uma por Marcos Muller.
Também a loucura, nas
linhas de Cláudia, tem seu
humor, sua delicadeza de percepção.
“O sofrimento psíquico
também pode ser suave”, diz a
jornalista, que ainda escreve
sobre distúrbios mentais no
blog Sinapses (blogs.estadao.
com.br/sinapses).
Para surpresa e alívio do leitor,
até o caminho da insanidade
pode terminar em borboletas
amarelas, como comprova
a solitária e perturbada Alaíde.
Perdida no mundo, numa busca
exaustiva pela felicidade, ela se
rende a não ser ninguém, a perder-
se em sua mente confusa,
a tornar-se borboleta. “Deixo
para o leitor muitas das conclusões
dos contos. Será que
essa mulher, Alaíde, é real? É
uma criação da imaginação de
alguém? O que realmente aconteceu
com ela? Fica a cargo do
leitor decidir no que prefere
acreditar”, diz a autora.
A loucura clínica pode até
parecer tema de ambiente hospitalar,
mas a identificação do
leitor pode vir rapidamente. O
que dizer dos loucos comuns,
que não mais se indignam, mas
se apavoram com a miséria de
uma criança de rua que se aproxima
demais? Ceder a um apelo
por afeto pode não ser visto
como benevolência, mas como
loucura dos dias de hoje.
As intempestivas relações
humanas são em si uma fonte
de loucura. Afinal, não há moralidade
na loucura nem limites
para o amor, como sugere o
conto “A Teia”. Para não perder
o amor de sua vida, a personagem
principal o amarra bem
em uma teia de desejo e paixão
e vai soltando-o devagar, cuidadosamente,
alimentando-o com
sonhos, sedução e noites de luxúria.
Mas não o deixa escapar.
A rejeição, bem lembra Cláudia
Belfort, também pode levar um
são à loucura, e remeter o novo
insano a um inverno escuro envolto
por uma intransponível
camada de culpa, que corroerá
o que restar de razão.
É também angustiante para
o leitor torcer por um final
feliz impossível, para mentes
tomadas pela insanidade. Em
“Os Ratos”, animais de apetite
insaciável devoram pontas de
dedos e orelhas, numa toada de
guinchos e chiados. “Esse conto
veio especialmente de uma
inspiração real. Um amigo que
chegou em casa dizendo que os
ratos haviam comido as pontas
de seus pés. Mas eles estavam
intactos”, lembra Cláudia.
Sua inspiração para a loucura
ficcional, aliás, veio da fértil
realidade. “Uma mulher que
decide entrar na contramão da
estrada para cometer suicídio
é um fato recorrente”, lembra a
autora. Ao menos em seu livro,
porém, até os perdidos encontram
alento na companhia de
um anjo Gabriel.