Cessadas as folias carnavalescas, feitas de desfiles e fantasias, a Quarta-Feira de Cinzas normalmente amanhece silenciosa e calma nas cidades, para dar lugar à rotina da vida. Assim é para qualquer cidade, como foi para Corumbá, que, além do término de uma belíssima festa oferecida à população e aos visitantes, este ano ficou com a dura perda pelo falecimento do arquiteto José Sebastião Cândia, 78 anos, inesperadamente ocorrida no sábado de carnaval. Nesta manhã cinzenta, me vem à mente a mais remota lembrança de Cândia localizada naquele quadro que meus olhos de menino observavam todas as manhãs ao ir a pé para a escola, bem cedinho e ainda um pouco escuro. Passava em frente à uma janela na Rua XV de Novembro, na qual, por entre a balaustra do peitoril, podia vê-lo trabalhando, debruçado sobre a prancheta de desenhos com a velha luminária pantográfica. Era final dos anos de 1950 e lembro-me de ouvir admirado comentários de que o arquiteto estaria projetando o novo edifício do Ginásio Salesiano de Santa Tereza, onde depois vim a completar o segundo grau. Mais tarde, pude compreender o edifício moderno que surgiria, com sua concepção modular, estruturada em pilares de seção circular, na utilização do concreto aparente (pintado atualmente) e, em especial, na condição de primeira obra local a apropriar-se do conceito de conforto térmico, pilotis e circulações verticais em rampas. Cândia formou-se em 1955 na Faculdade de Arquitetura do Mackenzie, em São Paulo, retornando para Corumbá em 1957, onde permaneceu até seu último dia. Do seu tempo de estudante de arquitetura, contava da convivência de colegas de turma, como Mário Viotti Guarnieri, que trabalhou de 53 a 56 como estagiário no escritório de David Libeskind e Eduardo Corona, autores do famoso Conjunto Nacional, em São Paulo SP; de Júlio Neves, arquiteto de prestígio com intensa atuação em São Paulo; e do catarinense Pedro Paulo Saraiva. Foi também contemporâneo de Paulo Mendes da Rocha, arquiteto hoje de grande expressão internacional e que se formou um ano antes de Cândia. Iniciou sua vida pública em 1958, quando contratado como arquiteto da Prefeitura de Corumbá, na gestão do então prefeito Luis Lins, ocupando o cargo de secretário de obras em diversas outras administrações: “Eu varria a seção, eu aprovava as plantas, eu protocolava, passei a medir os lotes... Eu medi, mais ou menos, cem lotes aqui, logo que eu entrei”. Reconhecia os ensinamentos determinantes de alguns de seus mestres para sua vida profissional, como Cristiano Stokler das Neves, que lhe mostrou as proporções desenhando edifícios clássicos; Elisiário Bahiana, seu professor de Composição de Arquitetura, que projetou o Viaduto do Chá e o edifício do Mappin. Quando veio a assumir a prefeitura de Corumbá de 1965 a 1967, Cândia pôde também contar com a experiência de seu ex-professor Azevedo Neto, um dos mais respeitados sanitaristas da América do Sul. Na sua gestão, tratou com insistência do saneamento básico, planejando e criando a Companhia de Água e Esgoto de Corumbá, elaborando estudo da estação de tratamento d’água, assessorado pelo ex-professor. Humildemente, dizia que muito aprendeu de obra no início da sua vida profissional com Joaquim da Silva Patrício, mestre português radicado em Corumbá. São dessa época seus projetos para casa comercial Karturchi e as arquibancadas do Estádio Arthur Marinho. Os primeiros projetos de Cândia foram pequenas casas e vilas para aluguel, onde pode introduzir algumas inovações importantes para o desenvolvimento da arquitetura e construção civil local. Empregou, pela primeira vez, a sapata corrida, o que provocou certo espanto a operários e proprietários, pela rapidez com que a obra se desenvolvia. Com o passar do tempo, a pedra usada nos alicerces convencionais da época foi ficando escassa e a mão de obra cada vez mais onerosa, o que levou à adoção em definitivo da nova técnica de estrutura. A planta residencial dominante na época era no sistema “vagão”, em razão da sala posicionar-se na frente, dormitórios e cozinha no meio, e banheiro geralmente no fundo – e sem espaço específico para corredor, obrigando que a passagem fosse feita por entre os cômodos. O banheiro era separado do corpo principal da casa, considerando-se eventuais odores incompatíveis com as atividades desenvolvidas na cozinha. Aos poucos, o arquiteto foi convencendo seus clientes a mudar esse hábito, oferecendo total garantia de funcionalidade para nova localização do banheiro dentro da casa, tornando-se o introdutor desta alteração. Atuou também como professor universitário, criou o símbolo para o bicentenário da “Cidade Branca”. Porém seu maior mérito foi sua produção difusora da Arquitetura Moderna na região de Corumbá. A ele podemos atribuir a autoria da primeira residência modernista na cidade – sua própria residência, em 1960 – que lhe abriu caminho, para inovar nas construções particulares que lhe eram confiadas. Em sua residência, utilizou amplamente elementos característicos do modernismo brasileiro: formas puras, telhados de uma água, empenas cegas; painel em pastilhas vitrificadas, elementos vazados de louça colorida. São incontáveis na cidade outras residências modernas, para clientes e admiradores da sua casa. Cabe, ainda, mencionar duas obras de Cândia na cidade e com características da Arquitetura Moderna: o Hotel Santa Mônica, célebre por ter sido algum tempo o endereço do Presidente Jânio Quadros após a renúncia, e o Salette Hotel, com suas varandas protegidas parcialmente por elementos vazados de louça colorida, já utilizadas na própria residência. Desde aquele menino que fui, o tempo passou e muitos anos depois pude usufruir da sua amizade, como colega arquiteto, quando me recebia em seu escritório para longas conversas nas tardes quentes corumbaenses. Ou do convite para uma macarronada em algum domingo, que ficou por ser marcado. São desses encontros (e desencontros) que ora me utilizo, para tardiamente registrar a importância deste arquiteto corumbaense, o que faço com muita sinceridade e emoção.