A saúde pública no Brasil, durante muito tempo, foi praticamente sustentada por esses tipos de hospitais, que tinham sua conformação jurídica baseada no modelo de "associação filantrópica". Essas entidades, então, eram formadas por pessoas abnegadas que, com trabalho ou dinheiro, mantinham o seu objetivo, que era oferecer assistência médica às pessoas carentes. Obtinham algum lucro recebendo dinheiro dos pacientes possuidores de recursos. Assim, com a contribuição mensal de cada um dos associados, em dinheiro ou trabalho, doações públicas ou privadas e campanhas de arrecadação, esses hospitais prestaram excelentes serviços ao país.
Com o advento do SUS, prevendo tratamento médico universal e gratuito a todos os brasileiros, a filantropia mudou de cara. Por imposição legal, são considerados "hospitais filantrópicos" aqueles que atendem, no mínimo, 60% (sessenta por cento) de seus pacientes pelo Sistema Único de Saúde. Portanto, sendo remunerados por dinheiro público. Em contrapartida, são beneficiados com a "isenção tributária". Vantagem extraordinária em um país com volúpia pela arrecadação. A partir desse momento, coincidindo com a evolução da medicina, tornando-a muito mais cara, essas associações se descaracterizaram, pois a contribuição dos sócios praticamente desapareceu. Passaram a sustentar seus objetivos com seu próprio patrimônio, doações privadas e, na maior parte, através dos repasses de dinheiro público, pelos pagamentos dos serviços prestados ao SUS e investimentos estatais diretos em reformas, ampliações, aquisição de equipamentos, etc.
Nesse novo modelo, desapareceu a verdadeira filantropia – a originária – despretensiosa, fundada tão-somente na solidariedade humana. Esses hospitais tornaram-se "grande negócio", afinal, o volume de recursos movimentado é muito alto. Com o uso abusivo da "grife filantrópica", sem mais a contribuição individual dos sócios, continuam a receber doações privadas, investimentos e repasses públicos, e não pagam tributos. Praticam concorrência desleal em face daqueles que são essencialmente privados. E alguns detalhes chamam a atenção: quase todos têm um quadro de sócios diminuto, um pequeno grupo que se reveza no comando, prestação de contas precárias e alto endividamento.
Essas entidades não são um mal em si. Embora a regra seja esse quadro desalentador, é possível encontrar algumas delas pelo país afora que são exemplos de seriedade, com administrações impecáveis e transparência solar. Nestas, porém, o que predomina é a presença de uma liderança absolutamente voltada para a "antiga filantropia", que consegue manter a predominância de valores éticos, voltados para o bem comum, cujos associados não recebem qualquer remuneração pelos serviços prestados e muito menos exercem atividade paralela idêntica, de forma particular, demonstrando flagrante conflito de interesses.
Cabe, portanto, um alerta à sociedade brasileira e ao Poder Público. A nós, precisamos separar o joio do trigo quando somos chamados a contribuir para alguma dessas entidades. Poucas são sérias. A maioria, infelizmente, é dominada por pessoas inescrupulosas que, a despeito de seus discursos pomposos, são verdadeiros aproveitadores da ingenuidade dos cidadãos incautos. E é de responsabilidade dos entes estatais, municípios, Estados e União, tratar o dinheiro público com mais seriedade, não repassando recursos e nem investindo em entidades filantrópicas "de fachada".
MAURI VALENTIM RICIOTTI, Procurador de Justiça. ([email protected])