As sociedades medievais primitivas tinham o homem como um mero súdito. O Direito de propriedade pertencia às castas dominantes: o Rei, o clero e a nobreza. Contra tal estado de coisas surgiu o iluminismo, no século XVIII, influenciando a Revolução Francesa (1789).
A partir daí, as Cartas constitucionais ocidentais (americana, francesa e inglesa) passaram a ter o homem como o principal destinatário de todo o poder. É uma nova era que surge, rompendo com o Estado medieval. Nos Estados Unidos aparece a primeira “Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia”, em 12.01.1776. Posteriormente, a Constituição Norte-Americana foi aprovada contendo as declarações dos direitos fundamentais do cidadão.
Entretanto, as treze colônias inglesas somente ratificaram a Constituição mediante a aprovação da exigência de uma “Declaração de direitos”, em 1791. Um destes direitos era a: “garantia do direito de propriedade....”
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, reconheceu o direito de propriedade como um “direito inviolável e sagrado”.
A Constituição Federal do Brasil de 1988 estabelece no art. 1º: “A República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito....”.
Pela primeira vez, uma Carta Constitucional brasileira estabelece esta norma programática. O constituinte de 88 finalizou vincular o governante, o legislador e o aplicador da lei a realizar o Estado Democrático de Direito, cujos requisitos essenciais, dentre outros, são: a) a submissão do Estado (governo) ao império da lei e b) a garantia aos cidadãos dos direitos individuais.
Esta declaração formal não importa automaticamente em assegurar a determinado Estado a existência efetiva do Estado Democrático de Direito.
Para tanto, é necessário que, em determinado território, governo e sociedade humana sejam assegurados e cumpridos os direitos individuais e o Governo se submeta ao império da Lei.
É como assinala JOSÉ AFONSO DA SILVA, referindo-se ao trabalho de DALMO DE ABREU DALLARI, ao comentar a Declaração Universal dos Direito do Homem, de 1789: “..o regime democrático se caracteriza, não pela inscrição dos direitos fundamentais, mas por sua efetividade, por sua realização eficaz”.
Nossa Carta Magna assegura aos brasileiros os direitos individuais, no seu art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...”
Atualmente todos os entes federativos não estão pagando os precatórios. O cidadão demanda com a Fazenda Pública em processo judicial durante vários anos. Às vezes até dez anos. No final, a sentença que lhe é favorável transita em julgado, condenando o Município (governo) a pagar-lhe determinado valor. O Texto constitucional estabelece o prazo de 18 meses para o pagamento. É incluído em orçamento até 1º de julho e deve ser pago até o final do exercício financeiro seguinte (art. 100 § 1º).
O não pagamento é uma violação clara e irrefutável dos direitos constitucionais do cidadão brasileiro.
Em Campo Grande, por exemplo, não existe um Estado Democrático de Direito. As dívidas do Município, resultantes de decisões judiciais transitadas em julgado, não são cumpridas.
Em razão do princípio de Direito público que estabelece a impenhorabilidade e inalienabilidade dos bens públicos, o Município não pode sofrer penhora e hasta pública, em processo de execução. Em consequência, o direito do cidadão de receber o valor da condenação (um direito de propriedade: o dinheiro é um bem patrimonial) é requisitado pelo Presidente do Tribunal de Justiça ao Prefeito, na forma do art. 730 do Código de Processo Civil.
Por outro lado, em relação ao cidadão o tratamento jurídico é outro: se deixa de pagar um tributo, sofre a execução fiscal e deve pagar a dívida em cinco dias, sob pena de penhora e praça. Embora possa oferecer defesa, essa não impede que a Fazenda Pública realize a praça de seus bens, pois os seus embargos não suspendem a execução fiscal.
São dois tratamentos diversos, embora o Texto Supremo assegure que “todos são iguais perante a lei” (art. 5º).
Entendemos que o não cumprimento dos precatórios acarreta a inexistência do “Estado democrático de Direito”. Ele somente existe nos governos que cumprem suas dívidas e respeitam os direitos constitucionais do cidadão.
Qualquer supressão aos direitos individuais elencados no art. 5º do Texto Supremo significa a inexistência do Estado Democrático de Direito. Assim como a supressão do direito de liberdade configurou a ditadura, também, a violação ao direito constitucional de propriedade, pelo não pagamento de precatório, significa a existência de uma ditadura. Qualquer nível de governo que não respeita o direito de propriedade e não cumpre o dever de pagar a dívida constante de uma decisão judicial transitada em julgado é tirano.
Para finalizar, queremos observar que a edição da Emenda Constitucional nº 62, autorizando o Município da Região Centro-Oeste a optar pelo pagamento de apenas 1% de sua receita líquida é inconstitucional. Os direitos e garantias constitucionais do cidadão são cláusulas pétreas estabelecidas na Carta Magna e não podem ser suprimidos através de Emenda.
A aprovação desta Emenda não recomenda o Congresso. Os parlamentares, em nome do povo, legislaram em prejuízo dos interesses dele. Aumentaram o prazo para que o governo pague o seu precatório até 15 anos, trazendo ao cidadão um odioso regime jurídico, que lhe é altamente prejudicial. Se o prazo atual é de 18 meses e o ente federativo não o cumpre, o que dizer do prazo de 15 anos. O cidadão vai morrer sem receber.
Certamente, o Conselho Federal da OAB, o grande defensor das liberdades públicas da sociedade civil brasileira, promoverá a respectiva Ação Direita de inconstitucionalidade da malsinada “Emenda”.
Evandro Paes Barbosa, Mestre em Direito Tributário e Ex-Conselheiro Federal da OAB.