Osvaldo Júnior,
especial para o Correio do Estado
Ana (nome fictício) abre um sorriso tímido e, numa resposta mecânica, como se fosse a única resposta possível, diz: “quero ser professora”. A menina, que “sonha ser professora”, já foi, compulsoriamente, “esposa”, apesar de sequer ter alcançado uma década de vida. Ana é guarani kaiowá e tem nove anos, completados em março. Em meados do ano passado, ainda com oito anos, foi entregue a um homem, também indígena e com cerca de 50 anos, para ser “esposa” dele. O caso, que aconteceu no território indígena Ñanderu Marangatu, em Antônio João, mostra uma face pouco notada da exploração sexual na fronteira: a ocorrência dessa violência entre indígenas.
A menina passou, pelo menos, três dias na casa do autor da violência. O período foi suficiente para a criança ficar muito machucada – na ocasião de sua retirada da casa, Ana não conseguia se sentar e precisava de ajuda para poder andar.
A denúncia da violência foi feita por vizinhos a um agente de saúde, informa a psicóloga Vivian de Souza Quadros, coordenadora do Creas (Centro de Referência Especial da Assistência Social) de Antônio João. O agente comunicou a situação a uma enfermeira, que trabalha na aldeia; essa profissional retirou a menina da casa e a encaminhou para o Conselho Tutelar.
Ana chegou ao Conselho Tutelar e se deparou com um universo estranho. Ela falava guarani e os profissionais do órgão não compreendiam esse idioma. O Creas também participou desse primeiro atendimento. Para se comunicar com a menina, os profissionais dos dois órgãos pediram ajuda a um tradutor.
Sem compreensão exata da violência, a menina afirmou, através do intérprete, que o violador era bom e cuidava dela. Em companhia de uma conselheira tutelar, a psicóloga Vivian buscou, com a menina, informações sobre a violência. “Ela contou que teve [relação sexual] nos três dias que esteve na casa. Disse que doía, mas, como ele dava roupa e comida, ela fazia”. Ana via na violência, na dor, sua contrapartida para agradecer ao “bem” que o homem lhe fazia.
Depois do primeiro atendimento, a criança foi levada para a delegacia. Apenas no dia seguinte, fez o exame de corpo de delito, pois esse procedimento é realizado em Ponta Porã. O intervalo não apagou as evidências da violência. Relatório do Conselho Tutelar afirma: “No dia do exame, a mesma apresentava sangramento, que, segundo o médico, seria resultado do estupro”.
Após o atendimento inicial, a menina foi levada para o abrigo da cidade, onde ainda permanece.
Histórico de violência
A dor sofrida por Ana em seu corpo de criança na relação sexual com um adulto somou-se às dores sentidas desde o Paraguai. Pelos relatos dos profissionais do Conselho Tutelar e do Creas, a menina carrega um histórico de violência, iniciada na sua família de origem. “No Paraguai, ela passava fome, a família era muito pobre. E a mãe judiava muito dela, espancava ela. Aí um tio dela a trouxe para o Brasil”, conta a coordenadora do Creas.
Não só a menina, mas também a violência, atravessaram a fronteira – divisão territorial conforme convenção não indígena. Ana, do lado brasileiro, permaneceu entre os guarani; não estava em terra estrangeira. Ela passou a residir na casa do tio, no território Ñanderu Marangatu.
A menina continuou apanhando e passando necessidades materiais. A família, igualmente pobre, resolveu dar a criança para um homem interessado em tê-la como mulher. Era o autor da violência sexual, o qual permanece foragido, possivelmente no Paraguai. Em agradecimento, o homem “presenteou” os tios da menina com uma cesta básica e algumas peças de roupa.
Tristeza profunda
Para os profissionais do Conselho Tutelar e do Creas, a menina estaria feliz no abrigo. “É a melhor fase da vida dela”, chegou a sugerir a coordenadora do Creas.
No entanto, Ana, recentemente, tentou o suicídio no abrigo. Conforme a psicóloga, a menina se entristeceu muito com a morte de um menino indígena, de três anos, que também estava abrigado e tinha muitos problemas de saúde. Ana se afeiçoou a ele, conforme Vivian.
A dor da perda foi, supostamente, mais profunda que as dores das outras violências. A menina dizia, no abrigo, que sentia muita falta do menino que morrera. Muito entristecida, ela pegou uma faca e tentou se matar. Foi impedida a tempo de não se machucar.
Na ocasião, a psicóloga conversou sobre o episódio com Ana. “Ela disse: ‘eu só queria morrer’. Ela não tem noção do que seja a morte”, disse a coordenadora. “Eu perguntei por que pegou uma faca e ela contou que uma vez o irmão dela enfiou uma faca aqui nele [apontando para a barriga] e morreu”.
Futebol e professora
Com os olhos voltados para o chão e ainda não muito segura em seu português, Ana falou à equipe de reportagem em uma sala do Conselho Tutelar. Não foi perguntado à menina nada que fizesse referência às violências sofridas.
Sem demonstrar entusiasmo, a criança disse gostar do abrigo. Também não se fez convincente ao falar da escola. Os olhos brilharam um pouco ao apontar sua diversão preferida: “Eu gosto de jogar futebol”. Contou, ainda, que quer ser professora.
A tudo ela respondeu com falas baixas, tímidas e, aparentemente, receosas, mas entremeadas de sorrisos. Suas respostas foram dadas em português e sem intérprete, pois se institucionalizou e já não é a mesma criança falante do guarani.