no Grupo Escolar Professor Maciel dos mais animadores: Seria inaugurado em Itabaiana o tão esperado curso ginasial. A estudantada prorrompeu em alegria com a alvissareira notícia. Naquele sábado primaveril mergulhei dezenas de vezes nas águas do Paraíba, felicíssimo, de olhos abertos, brincando com os peixes. Rumei para a convidativa praça Epitácio Pessoa onde, deliciosamente, as árvores frondosas ofereciam um sombreado balsamador sobre bancos redondinos. Surpreendeu-me a presença de figuras notáveis da cultura local, destacando-se o brilhante advogado Dr. Veloso, o tabelião José Bandeira, o médico Dr. Santiago e, para abrilhantar a roda dos intelectuais, o professor Almeida que viera diretamente de João Pessoa, destinado a implantar o Colégio Estadual de Itabaiana (ginásio). A praça, indubitavelmente, era uma mina inexaurível de informações. Aproximei-me, de mansinho, numa distância que podia ouvilos. O professor Almeida esbanjava sabedoria, com voz segura, gesticulando, dizia que visitara a Europa, especialmente a França, ficara encantado com os quadros de Vicente Van Gogh, com a literatura de Tolstoi, Victor Hugo, Anatole France, Renan, Rousseau, Bayle, Proudhon e Lamennais. Acrescentou que a simplicidade do estilo de Ernesto Renan o seduziu com a sua paixão social de fundo religioso com a obra “Origens do Cristianismo”, deixandose arrebatar por sua graça serena e clássica, por sua erudição despretensiosa, mas imensa. Ouvindo o extraordinário educador penetrei num mundo novo. Tinha a impressão de um garoto que, tendo estado encerrado numa cela, encontra de súbito a porta escancarada e sai para um jardim luxuriante e banhado de sol. A princípio, esta ampliação dos meus horizontes deu-me um sentimento de exaltação quase febril, como o que deve experimentar um garimpeiro ao topar um filão de ouro no meio do xisto. Dei um passo para a frente. O coração pulsavame violentamente de prazer. O momento mais interessante, porém dramático, deu-se quando o professor Almeida relatou um episódio tenebroso ocorrido após os exércitos espanhóis ocuparem a Holanda e Flandes, na segunda metade do século XVI, dando ensancha ao clarão das fogueiras da Inquisição onde, sem dó e piedade, os hereges eram queimados. Os cidadãos cerravam as portas e as janelas para não ouvir os gritos de dor e angústia dos homens e mulheres que ardiam na praça. Um holandês, de nome Klaes, por desdenhar das “Indulgências” foi condenado ao suplício da fogueira, na presença da mulher e do filho. Klaes foi queimado a fogo lento na praça de Damme, enquanto os sinos dobravam tristemente. A esposa não viu o corpo do mártir estorcer-se de dor devido a nuvem branca que envolvia-lhe o corpo, mas ouviu um grande grito chamando por ela e o filho. Foi o fim. A lenha queimada reduzira-se a um monte de cinzas ao pé da estaca, mas o corpo carbonizado de Klaes permanecia suspenso pelo pescoço. No dia seguinte a esposa tomou o filho pela mão e levou-o pelas ruas silenciosas até a praça do suplício. Ela dirigiu-se ao sargento da guarda. - Senhor sargento, este é o órfão de quem está pendurado ali, e eu sou a viúva. Desejamos beijar-lhe o rosto querido e recolher algumas cinzas para conservar a sua memória. O sargento consentiu. Então mãe e filho caminharam sobre a lenha queimada, chegaram até o corpo e tocaram na face do esposo e pai. A mulher tirou um pouco de cinza da região do coração, onde as chamas tinham aberto um profundo buraco no corpo. E ajoelhou-se com o filho e orou pela paz da alma de seu marido. Chegando em casa pegou um pedaço de seda vermelha e um pedaço de seda preta, e fez com ele um breve. Coseu dois fios nas extremidades, passou-os em volta do pescoço do filho e disse: - Meu filho, estas cinzas simbolizam a consciência. O vermelho é o sangue do teu pai, e o preto é o nosso luto. Eu ponho estas cinzas sobre o teu coração e sobre o coração de todos os justos, para toda a eternidade. E sempre, onde quer que se cometa uma injustiça no mundo, estas cinzas hão de bater sobre o teu coração. E tu falarás sem medo, mesmo em perigo de morte, em favor de todos aqueles que são aviltados e oprimidos por causa da sua consciência. - Assim será – disse o filho, com lágrimas escorrendo na face. Outras lágrimas escaparam dos olhos dos figurões da praça Epitácio Pessoa, após o impressionante relato. A mensagem poderosa da dramática cena trago comigo até hoje no fundo do meu coração.