A menina Ana, por ser indígena, vivencia uma experiência diferenciada de abrigamento em relação a crianças que não são indígenas. De acordo com o antropólogo Levi Marques Pereira, professor da UFGD (Universidade da Grande Dourados), o abrigamento de uma criança indígena tem um agravante: o processo de negação da própria cultura. Em 2008, Pereira fez um estudo sobre a situação de crianças e adolescentes indígenas em abrigos de Dourados (MS).
Em meio às conclusões de sua pesquisa, o professor percebeu que, nos abrigos, há um estímulo para o indígena abandonar seu universo cultural. “Durante a pesquisa, encontrei crianças indígenas que foram abrigadas sem domínio da língua portuguesa, sendo que os responsáveis pelos cuidados disseram que elas permaneciam sempre caladas até passarem a ter um domínio básico do português”, afirma o antropólogo. Segundo ele, as crianças e adolescentes indígenas “passam por constrangimentos quanto ao uso da língua materna”.
O professor não rejeita, em absoluto, o abrigamento, mas defende que a criança deveria ser abrigada em sua própria comunidade. “Toda sociedade deve ser capaz de cuidar adequadamente das pessoas que biologicamente e culturalmente produz”, argumenta. E, enfático, salienta: “Retirar a criança e o adolescente indígenas de suas comunidades é expô-los à nova violência”.
Levi Pereira, em consonância com as mudanças na legislação quanto à adoção de indígenas (veja box), afirma que as crianças devem retornar às suas comunidades. No entanto, ele pondera que o processo deve ser conduzido com muita cautela para que o indígena não seja entregue a pessoas distantes de seu convívio social, a não parentes. Nesse caso, a criança pode voltar a sofrer violências.
O antropólogo afirma, ainda, que os responsáveis pelos abrigos tendem a equiparar ações violentas aos próprios costumes dos indígenas, o que leva a criança a rejeitar um mundo que acredita ser o único violento. “A criança é informada (de forma explícita ou sublimada) que a sociedade indígena, da qual é originária, é violenta e trata mal as crianças e que, por este motivo, ela foi abrigada fora de sua sociedade, para que fosse protegida. A criança é levada a negar sua identidade original”, observa o professor. (OJ)