ACONTECEU EM 1986...
Mato Grosso do Sul ganhou os holofotes de todo o Brasil quando, em outubro de 1986, o então presidente José Sarney anunciou uma de suas últimas cartadas para fazer vingar o famigerado Plano Cruzado, cartada dada no início daquele ano para tentar frear a já galopante inflação: o confisco de gado de corte em estados criadores. Ou seja, o nosso incluso.
Calma queridos leitores, principalmente os mais novos. Preparem o sofá ou cadeira que o 'Memória' dessa semana te levará a um tempo deveras obscuro de um País que vivia apenas o segundo ano de sua Nova República, após o fim oficial da então Ditadura Militar. E como tudo que gira no universo da economia, a explicação precisa ser gradual, para que você possa apreciar e entender os detalhes de um Brasil completamente assolado pelo caos financeiro.
Quando o Correio do Estado chegou as bancas no dia 11 de outubro de 1986 com a chamada "E os bois desfilaram no Centro", com a pitoresca foto de Valdenir Resende mostrando a população campo-grandense se acotovelando e aplaudindo o comboio de 14 caminhões carregando os 247 bois confiscados por entidades federais (entre eles a Polícia Federal), era o ápice de uma guerra entre os pecuaristas e Sarney, seus ministros e a então temida Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), braço governamental mais falado daqueles tempos de desabastecimento da população.
O anúncio que deixou a classe pecuária enfurecida, na manchete do Correio do Estado
Não era para menos. O Plano Cruzado previa, além de uma nova moeda, uma política de contenção da inflação por meio do tabelamento de preços e salários. Os economistas do governo previam (e até acertaram no início) que a soma das duas condições devolveria um maior poder de compra à população. Mas não bastou muito tempo para a coisa sair do controle. Polícias e agentes da Sunab recebiam quase que a cada minuto nas grandes cidades reclamações da população de supermercados remarcando preços acima dos permitidos pelo governo nas tabelas ublicadas em jornais e revistas e distribuídas gratuitamente nas ruas.
Sem alternativas, Sarney foi à televisão em 1 de março conclamar pela participação popular na luta pela fiscalização dos preços. "Cada brasileiro e brasileira deverá ser um fiscal dos preços, um fiscal do presidente para a execução fiel desse programa em todos os cantos desse País", apelou o presidente em cadeia nacional.
A Sunab foi, durante um ano, o braço mais temido e importante do governo, com poder de lacrar comércios, como essa venda no Centro de Campo Grande (Arquivo/Correio do Estado)
Deu certo, muito certo. Com direito até a broches e camisetas, nasciam os "Fiscais do Sarney", populares que munidos com a tabela da Sunab circulavam pelos supermercados e denunciavam os comerciantes abusivos que prejudicavam o povo com a remarcação de preços ou a violação de embalagens (sim, como forma de compensar o prejuízo, alguns menos honestos abriam os produtos e tiravam conteúdo para revender soltos em suas lojas). O primeiro presidente da redemocratização, visto com desconfiança por ser aliado dos militares e só chegar ao poder após a morte do 'eleito' Tancredo Neves, um ano antes, viu sua popularidade enfim ser alcançada, com direito à críticas e ofensas a jornais, rádios e emissoras de TV que o criticasse.
"Eu sou um fiscal do Sarney", o broche, oportunista e politiqueiro, distribuído às donas de casa em supermercados e feiras livre: o pedido de ajuda do presidente deu certo
Mas havia um setor alimentício, cuja origem estava deveras distante das megalópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, cujo consumo diário é considerado essencial por grande parte dos brasileiros e que cujos responsáveis são muito bem organizados, com direito até a uma ala própria de deputados e senadores, a União Democrática Ruralista, existente desde os anos 1950: o da carne vermelha, o gado de corte, os pecuaristas. Contra eles, Sarney não teria vida fácil.
UMA TREMENDA CONFUSÃO
Não demorou para os 'Fiscais do Sarney' perceberem que se havia um produto que apresentava constantes aumentos de preço, esse era a carne vermelha.
Durante quatro meses, governo e associações de supermercados debatiam uma solução clara: não era possível o tabelamento do corte a granel. E a carne só chegava dos frigoríficos após o pagamento do ágio, instrumento usado durante toda aquela década como forma de burlar a inflação. Ou seja, transaçãoes comerciais ou financeiras fora dos índices de preços vigentes previstos.
O mercado do boi foi um dos primeiros a conviver com o ágio.
A sinalização de que o governo interferiria nos frigoríficos e o custo cada vez mais elevado do ágio fez surgir o efeito esperado: o sumiço da carne dos açougues e supermercados em todo o Brasil.
A carne continuou faltando e as teorias e acusações do lado oficialesco eram constantes
Para o governo, contudo, era só jogo de cena. Denúncias formais das gestões estaduais de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro apontavam que criadores estavam com os bois nos pastos em condições de abate, mas não concordavam em vendê-los pelo preço congelado da arroba, que era de 215 cruzados (R$ 61,45 em valores atualizados).
A arroba estava sendo vendida a 350 cruzados (R$ 100,03 atualizados) no câmbio negro quando o governo decidiu intervir.
E assim após um mês de desmentidos oficiais e de planejamento nos bastidores, com forte pressão popular, Sarney anunciou no dia 8 de outubro o início da Operação Confisco, ou como ficou conhecido na imprensa na época: 'Operação Boi no Pasto'. A fórmula era clara: PF, Sunab e mais quem fosse convidado iriam aos pastos em quatro estados e, caso encontrassem gado no peso ideal para o abate, ele seria comprado pelo governo pelo preço definido em tabela. Se a 'proposta' fosse recusada, o governo então confiscaria os bichos, entregaria à Sunab e reembolsaria o pecuarista pelo preço tabelado.
DEPOIS DA QUEDA, O COICE
Lembra do título dessa coluna leitor? Pois bem, chegamos enfim nela. "A população saudou com entusiasmo a passagem de um comboio de 14 caminhões boiadeiros que trouxe o restante do boi gordo desapropriado pela Sunab", diz o texto do citado dia do Correio.
Segundo a reportagem, ilustrada pelo registro de Valdenir Rezende de uma empolgada senhora aplaudindo com entusiasmo um dos caminhões, a população parada nos pontos de ônibus, bares, sacadas e afins não esconderam a satisfação com a medida de Sarney.
Pudera, afinal de acordo com a própria reportagem, em um cenário de falta de carne e açougues fechados, o número de abates naquela semana subiu de 1.617 para 2.840 animais. E a promessa era de que a panela estaria cheia já naquele fim de semana.
O resultado da primeira operação boi no pasto: 500 animais levados para o abate. "Mas e a carne Sarney?", era a retórica popular imortalizada no bordão de Jô Soares em seu programa de humor
Porém, e sempre existe um porém, como diz o ditado, pecuaristas, UDR e frigoríficos reagiriam à investida governamental. Pudera. Nos dias que se seguiram, dois atos da Sunab ajudariam a derrubar por terra a popularidade de Sarney. Primeiro: o 'baile' tomado por agentes da PF e Rceeita Federal ao tentarem domar os bichos no pasto. Sem experiência, muitos passaram a vergonha e se utilizaram de métodos não tradicionais e, porque não, cruéis diante das câmeras de TV, que passaram as imagens para todo o País. E em segundo, a apreensão de bichos fora do tempo certo de abate. Na ânsia de fazer a operação dar certo, o governo cometeu excessos.
“A ordem era trazer duas mil cabeças. Nós ficamos sabendo mais ou menos onde ia ser a desapropriação e fomos lá. Como não havia dois mil bois gordos, pegaram até um gadinho do administrador da fazenda para completar a cota. Depois que eu mandei a matéria naquele dia para o 'Jornal Nacional', fui conversar com os caminhoneiros que estavam pegando os bois para levar de volta. Um deles falou o seguinte para mim: ‘Em geral eu ponho 17 bois num caminhão e agora estão entrando 23 bois e está sobrando espaço.’ Perguntei o que significava aquilo, e ele disse: ‘É boi magro, não é boi gordo.’ No dia seguinte, fui para onde os bois eram abatidos e, pesando boi por boi, eu comprovei que era boi magro", disse o jornalista Tonico Ferreiro, então repórter de pecuária do programa 'Globo Rural' e que acompanhou a operação em Sidrolândia, onde ocorreram as apreensões em Mato Grosso do Sul.
Para se ter uma ideia da repercussão do caso, o Correio do estado só não trouxe o abate de bois em sua capa por três dias em todo o outubro. Seguiu-se todo tipo de troca de confusões (leia abaixo): que pecuaristas do Estado estavam escondendo gado no Paraguai, que os bois que se seguiram apreendidos pela Sunab tinham sua carne direcionada a estados onde o PMDB, então partido de Sarney, estava atrás das pesquisas eleitorais, justificativas de que o gado estava doente, sumiço de mantimentos para bovinos nas lojas especializadas. A carne continuava em falta nas panelas do povo, a UDR pagava do bolso anúncio com o número de abastes no dia anterior nos jornais e, no meio tudo, restou a um sul-mato-grossense desmoronar de vez a tática de Sarney.
Quatro dias antes de ver seu nome envolvido em acusações de ágio, Fragelli atendeu Sarney e veio ao MS cobrar pecuaristas e frigoríficos. Depois a credibilidade acabou....
José Fragelli, ex-governador do Mato Grosso unificado entre 1971 e 1975 e ex-senador por Mato Grosso do Sul entre 1980 e 1987, morto em 2010, foi acusado pela revista 'Veja'de vender gado com ágio escondido a um frigorífico de Aquidauana. Apenas quatro dias depois de vir ao Estado pressionar empresários do ramo a mando de Sarney, na condição de presidente do Senado Federal.
Presidente do senado, Fragelli implodiu de vez o confisco dos bois ao ver seu nome envolvido em denúncias de venda de gado com ágio
Tal acusação nunca foi devidamente apurada ou confirmada. Não houve tempo. Antes mesmo das eleições daquele ano para governador, em 15 de novembro, a gestão Sarney suspendeu o tabelamento de preços e o confisco de bois no pasto. O PMDB, afinal, era o grande vencedor, levando a maioria dos estados.
Para combater a inflação, diversos planos surgiram depois (Plano Cruzado II, Plano Bresser, Plano Verão e Plano Collor), até que apenas sete anos depois, já na gestão Itamar Franco, nasceu o Plano Real, moeda que está em vigor até hoje. Mas isso é assunto para outra coluna amigos.
*Rotineiramente nossa equipe convida você, leitor, a embarcar com a gente na máquina do tempo dos 64 anos de história do jornal mais tradicional e querido de Mato Grosso do Sul para reviver reportagens, causos e histórias que marcaram nossa trajetória ao longo desse rico período. Você encontrará aqui desde fatos relevantes à história do nosso Estado até acontecimentos curiosos,que deixaram nossas linhas para fomentar, até hoje, o imaginário da população sul-mato-grossense. Embarque com a gente e reviva junto conosco o que de melhor nosso arquivo tem a oferecer.
E você leitor, gostaria de relembrar um fato, uma reportagem, uma história de nossa história. Nos envie sua sugestão pelo nosso whatsapp: (67) 99971-4437.