Após meses de avanço do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil, as orientações da ciência em relação à pandemia continuam as mesmas: higiene constante, uso de máscara e distanciamento social.
Sem um consenso em relação ao medicamento ideal ou uma vacina pronta para o uso, a prevenção acaba sendo a melhor saída, mas nem sempre a adotada pela população.
Mesmo com o uso obrigatório de máscara, passível de multa, a população em Campo Grande continua desrespeitando o decreto.
Basta uma rápida visita a alguns bairros para perceber a movimentação em bares, restaurantes e a adoção parcial de materiais de proteção.
Mas, se a ciência aconselha, por que a recusa de alguns em seguir o protocolo?
A pergunta-chave do comportamento da população na pandemia é justificada de diferentes formas pela própria ciência, que aponta a disseminação das fake news, o desconhecimento do processo científico e até mesmo o “jeitinho brasileiro” como os culpados pelo comportamento nada exemplar no combate ao vírus.
De acordo com uma pesquisa publicada em 2019 pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), os médicos e cientistas de universidades e institutos públicos de pesquisa estão entre os profissionais que mais despertam confiança entre a população.
Os jornalistas também aparecem como fontes de informação confiável em médio grau, enquanto os políticos, artistas e militares surgem com baixa ou nenhuma confiança por parte da população.
De acordo com o coordenador do projeto Mídia Ciência de Jornalismo Científico, André Mazini, esta é uma tendência observada muito antes do coronavírus.
“A maioria das pessoas costuma confiar muito em informações científicas. Isso já era um dado constatado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, no entanto, durante a pandemia, de fato, aumentou muito a confiança das pessoas na ciência.
De acordo com uma pesquisa da Edelman Trust Barometer sobre a confiança e o coronavírus, no Brasil, cerca de nove em cada dez dos entrevistados disseram que precisam ouvir mais os cientistas e menos os políticos.
A mesma pesquisa revelou que, no Brasil, cientistas (91%) e médicos (86%) são os profissionais apontados como porta-vozes mais confiáveis”, explica.
Porém, André Mazini frisa que não há uma explicação fácil para o fato de os cientistas serem os mais confiáveis, mas as medidas de segurança não serem seguidas por parte da população. “Existe o problema do excesso de informações, em que nem sempre conseguimos identificar qual é a mais confiável, as fake news que tantos danos têm gerado, a politização de temas científicos, etc.
Mas a experiência de outros países, ou mesmo alguns casos nacionais, nos ajudam a verificar que medidas que atingem diretamente a vida das pessoas demandam processos eficientes de educação popular até que sejam implementadas”, frisa.
Segundo o coordenador, a história mostra que a rejeição costuma ser uma reação comum às novas ideias. “Foi assim quando o uso do cinto de segurança se tornou obrigatório, por exemplo, ou mais no passado, quando ocorreu a Revolta da Vacina no Brasil.
Nestes dois casos, a primeira reação popular foi de rejeição, mas, ao longo do tempo e com investimentos estratégicos no sentido de conscientizar as pessoas da importância dessas medidas, ambas foram assimiladas pela maioria dos brasileiros”, frisa.
A Revolta da Vacina foi um motim popular ocorrido em novembro de 1904 na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, contra as novas medidas de saneamento – que causaram problemas de moradia – e a obrigatoriedade da aplicação da vacina de varíola na população.
A arbitrariedade das decisões e o medo do desconhecido causaram um crescente descontentamento da população.
No ano em que a população mundial espera uma vacina eficiente contra o coronavírus, pode parecer absurdo imaginar a revolta contra as doses pioneiras do passado.
Educação
O psicólogo Vicente Sarubbi Júnior, professor do curso de Medicina da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre e doutor em Ciências com ênfase em saúde pública pela Universidade de São Paulo, também cita a Revolta da Vacina como exemplo da incompreensão que a ciência pode causar à primeira vista. “A população é deseducada cientificamente no nosso país, com certeza”, acredita.
De acordo com o pesquisador, a responsabilidade dessa incompreensão da população também é da ciência, por nunca ter de fato investido na educação científica da população. “As pessoas não podem simplesmente aderir a algo que não faz sentido para elas, porque não compreendem o poder de suas escolhas frente ao que sempre foram direcionados a cumprir, as normas da saúde. Não há incentivo ao protagonismo da população e sim ao saber do cientista que continua a praticar seu discurso naturalizante, de hegemonia social, pelo poder preditivo, possibilidade de acontecer um resultado esperado, que a ciência da saúde a ele confere. Uma ciência de promessas que ao invés de incentivar a população a pensar criticamente, refaz o mesmo percurso informacional daquilo que devem seguir", aponta.
Para o professor de Física Edmilson de Souza, que já atuou em projetos de popularização e alfabetização científica, essa compreensão do processo científico pode ser a principal contribuição da pandemia para a melhora na relação entre ciência e sociedade. “Para os estudantes, por exemplo, é vendida uma ciência finalizada, acabada. Mas o processo da descoberta científica é extremamente importante, o caminho que a ciência percorre, o fato de que existe toda uma discussão, um procedimento por trás das inovações. Durante este período de pandemia, percebo um interesse das pessoas nisso, ainda que as fake news pesem no cotidiano”, ressalta.
Segundo Vicente Sarubbi Júnior, as notícias falsas influenciam negativamente a população por serem mais fáceis de assimilar e acreditar, em virtude da narrativa com a qual são construídas. "Informação por informação, as redes sociais têm maior poder narrativo e com fake news bastante atraentes. O que precisamos é dialogar, educação em saúde para o cuidado de si e do outro", acredita.
Outro ponto que dificulta a adesão das pessoas às campanhas de saúde são as informações advindas de áreas distintas de conhecimento, como a economia.
A população precisa lidar com o medo do vírus e o da crise econômica. “Qual é a ‘evidência’ que eu devo seguir, a de que eu corro risco de adoecer e de morrer porque não estou seguindo o que está sendo preconizado pela ciência ou risco de adoecer e morrer de fome porque eu vou falir? No fim, as duas questões caem no lugar de angústia. A angústia é sempre uma angústia de morte. É esse aperto que a gente sente na garganta e essa pressão no peito”, pontua.
Diante das angústias, a decisão da população acaba sendo individual, e não coletiva, o que dificulta a adesão às campanhas de isolamento social e proteção no cotidiano.
Impunidade e jeitinho
Para o professor e filósofo Márcio Luís Costa, o comportamento negligente da população em relação às orientações para diminuir o contágio do novo coronavírus é semelhante à falta de cuidado para evitar a proliferação do mosquito-da-dengue.
Em ambos os casos, para Costa, a população se ancora no “jeitinho brasileiro”, que acredita na impunidade, neste caso, de não ser contaminado pelo vírus.
“Parece que vamos sempre muito mal no quesito, prevenção. Parece que nós não temos realmente a cultura da prevenção, me parece que, no lugar da cultura da prevenção, nós temos a cultura do jeitinho brasileiro. Depois nós damos um jeito. E, por outro lado, temos outro elemento, que é a certeza da impunidade, ou seja, a certeza de que não vai acontecer nada”, frisa.
Para o filósofo, o brasileiro prefere brincar com a situação, seja da dengue, seja do coronavírus. “Existe uma imaturidade de fundo em relação às questões preventivas, e elas se sentem absolvidas de prevenir porque creem que depois terão como dar um jeitinho ou, se for algo mais grave, no fim das contas não vai acontecer nada com ninguém”, aponta.