A mais de 300 quilômetros de Porto Murtinho, quem comanda a aldeia Tomasia é uma mulher, casada, mãe de dois filhos, índia kadiwéu que nasceu e foi criada na comunidade. Única cacique mulher do Estado, Cenira Farias Dias está no penúltimo ano de “mandato”, depois de ter sido escolhida pela comunidade para representá-la.
Por telefone, a voz é de uma jovem que diz nunca ter sonhado em se tornar liderança. No entanto, quando a indicação veio das 58 famílias que habitam a região, ela não recuou.
“A escolha é deles, são quatro anos de mandato de um cacique, aí se faz uma reunião e entrega o cargo. Não é votação, é uma indicação. Nunca passou pela minha cabeça, mas eu acabei aceitando o pedido”, conta.
Filha de cacique já falecido – Silvano Dias –, Cenira é a primeira “cacica” que Tomasia já teve. No dia a dia, ela corre atrás do que a aldeia precisa, percorrendo um longo caminho até a cidade à qual eles estão ligados, Porto Murtinho. “Aqui é longe, a cidade mais perto é Bonito, são 140 quilômetros”, situa.
O dia de hoje – 19 de abril – será comemorado seguindo as tradições, com dança e música. No entanto, logo na segunda-feira, a “cacica” tem de retomar a realidade de luta: o desafio de conseguir atendimento médico para a comunidade.
“Estamos com um ano sem ponte. Ano passado, fui até Campo Grande para pedir a ponte, levei documento. Foi depois de uma enchente que ela rodou e caiu”, explica. A estrutura ligava a aldeia Tomasia a Barro Preto e, pela falta dela, há cinco meses os médicos não visitam a região. “E está fazendo bastante falta. O médico vinha toda semana, só que, por conta dessa ponte, faz quatro, cinco meses que não vem, por ter enchido o rio”, explica. Quando a cheia não era tanta, ainda era possível passar de carro. Só que agora o cenário é outro.
As lutas da “cacica” nos últimos três anos foram também pela reforma da escola, da estrada que dá acesso à aldeia e por um trator. “O governo distribuiu e a única aldeia que não foi contemplada foi aqui, a gente”, lamenta.
A área da aldeia, ela contabiliza ser de mais ou menos 2 mil hectares, onde são plantados milho, mandioca, abóbora e arroz para consumo próprio.
Antes da liderança, a indígena estudava, estava para terminar o Ensino Médio, mas os compromissos a fizeram deixar os estudos. “Às vezes, tem reunião nas outras aldeias, sou chamada para Murtinho ou Campo Grande”.
A família ficou orgulhosa de vê-la como cacique, a própria Cenira, então, nem se fala. “Eu me sinto orgulhosa da comunidade ter me dado essa chance: ser a primeira mulher cacique, mas é um trabalho dificultoso, o de dar melhoria para a comunidade”.
Ser “cacica” só veio a oficializar o que Cenira já gostava de fazer: ajudar as pessoas na comunidade. “As que mais precisam, tem gente que tem dificuldade de ir para Porto Murtinho para fazer cadastro no Bolsa Família, ou não está cadastrado na cesta básica, aí eu sempre ajudei”, relata.
Na programação de hoje, Cenira fará abertura, junto do professor de língua indígena. O que ela mais quer para o seu povo é que se apegue aos idosos. “Porque sabem mais que a gente e incentivam o ensino de como deve ser o ritual do kadiwéu”, diz. O medo de que os costumes, inclusive a língua, sejam enterrados com os antepassados não é singular de Tomasia nem dos kadiwéus, mas das etnias como um todo.
Cenira mesmo não fala a língua materna, entende e hoje vê os filhos aprendendo. “Nós não podemos acabar com a nossa língua. Ela faz falta”, considera.
Sobre sua etnia, Cenira só quer reforçar essa imagem. “Eu gostaria que você falasse que hoje o kadiwéu é muito respeitado. E eu me vejo como inspiração para outras meninas”, ressalta a “cacica”.