Tânia era a amiga mais baixinha da nossa turma de adolescentes. Responsável, centrada na escola e nos trabalhos domésticos, não tinha muita oportunidade de sair de casa: sua família, bastante numerosa, professava o que se conhecia como religião protestante que, como outras, não via a alegria e o lazer com bons olhos.
“Eram coisa do mundo, não eram de Deus”, nos ensinavam pastores e padres. E Tânia, obediente aos pais nordestinos e aos quatro irmãos mais velhos do que ela, era a que tinha menos coragem de transgredir, de vez em quando, as expressas ordens para não pegar um cineminha no Rialto ou participar das domingueiras do Rádio Clube.
Eu tinha um pouco, só um pouquinho mais de possibilidades de exercer o sagrado direito inerente à juventude: sonhar, sorrir, ouvir música, cantar, dançar e celebrar, com alegria, a vida. Não era sempre, claro.
Dependia muito do humor dos meus pais. Era preciso contar com a sorte de estar – um ou outro – acessível aos meus insistentes apelos e pedidos. “- Deixa, mãe, por favor, por favor”, - “Pai, preciso de um dinheiro pro cinema”. – “Não tenho, filha”. Era um sufoco!
Quando a mãe de uma de minhas amigas deixava, a da outra menina empacava: “- De jeito nenhum! Não deixo! Quantas vezes tive que chamá-la pra lavar a louça suja do almoço??? Nem pensar!” E não adiantavam promessas: - “Eu prometo que vou lavar, mãe, eu prometo isto, prometo aquilo”...
Quando o pai de uma dava o dinheiro, o da outra não podia. E assim, entre broncas e trancas, pouca grana e muitos planos, íamos vivendo “nossa linda juventude, página de um livro bom”.
Num sábado qualquer, eu estava programando ir ao bailinho que acontecia todo domingo à noitinha no Sesc, num prédio antigo da Rua XV de Novembro, entre a 13 de Maio e a Rui Barbosa.
O som vinha dos bolachões de vinil, guardadores das vozes inconfundíveis de Pepino di Capri, Pino Donaggio, Roberto Carlos, Wanderléia, Moacir Franco... Ah, Moacir Franco, que me fazia verter lágrimas de doce amargura: “Vai a distância que nos separar por mais que sigas há de nos ligar”.
E antes que eu me afogasse em escondidos prantos, um salvador de pátrias emocionais trocava os discos: e lá vinham os rocks de Neil Sedaka ou os twists de Chubby Cheker, e do pranto fazia-se riso, caindo todos nós nos embalos sacolejantes de domingo à noite.
Essas festinhas inocentes começavam às 18 h e duravam até as 21 h, tempo suficiente pra gente curtir os amigos, ouvir as “fofocas” da semana sobre quem estava namorando quem e, claro, para o santo exercício do flerte, palavra bem mais romântica (lembra flor) do que paquera.
E eis que, num certo final de semana, com tudo já combinado anteriormente, aguardei ansiosa o sol dominical sumir no horizonte. Estava me preparando para a hora abençoada de caminhar até o meu sonhado destino, quando a luz acabou na nossa Vila Noroeste, o que era bem comum à época.
A escuridão invadiu meu mundo. Tratei de procurar às pressas uma vela para terminar minha toalete de adolescente despretensiosa: prendi o cabelo em rabo de cavalo, passei a Colônia Seiva de Alfazema, da Phebo, calcei os sapatos, sem esquecer da correntinha de ouro com medalha de N. Sra. Auxiliadora, presente de uma tia e madrinha, senhora gorda e bonachona, nascida em Corrientes, na Argentina.
Atravessei rapidamente a rua de paralelepípedos para chamar a Tânia que morava em frente à minha casa. Esbaforida, ela veio me puxando e explicando que tínhamos que sair antes de seus pais voltarem do culto.
Em poucos minutos, mais duas amigas se juntaram a nós e caminhamos rápidas e solidárias até o prédio do velho Sesc, já repleto de jovens da época, separados, como sempre, por turmas: os do Colégio Estadual, os do Colégio Dom Bosco, alguns do Osvaldo Cruz, e algumas meninas do Colégio das Irmãs.
Por sorte, conseguimos chegar a tempo de arrumar cadeiras e Taninha foi logo se sentando, enquanto eu e as outras, em pé, começamos a conversar com colegas que encontramos por lá. De repente, um grito histérico irrompeu no meio do pequeno salão. Voltamo-nos, ao mesmo tempo, para onde havia partido aquele grito de horror. Minha pequena amiga, em pé, chorando, apontava para o chão.
Assustadas, imaginamos o pior. Um rato? Um bicho peçonhento? Um caco de vidro? Passamos a examinar o chão com mais cuidado e nos deparamos com o motivo do seu descontrole: Tendo se arrumado no escuro, na pressa de sair de casa, Taninha calçou um pé com sapato preto e outro pé com sapato branco, fato fácil de acontecer naquela época em que os modelitos e as cores de sapatos para as moçoilas eram bastante restritos: fechados, de verniz e arredondados na ponta. Eram os chamados sapatos de boneca, nas cores preta, branca, marrom e bege queimado.
O resto era conga e bamba – se menina – e kichute, se menino, pra ir à escola. Diante daquele vergonhoso desastre (à época nem se cogitava em se lançar modas esquisitas) só me restou acompanhar a amiga de volta pra nossa Vila, sem ter dançado uma música sequer. Frustrada, fui dormir sonhando com rodopios ao som de Billy Vaughan e Ray Coniff. Mas o que fazer? Amigos são pra essas coisas.
* professora, poeta, [email protected]