Na segunda-feira (29), Luiz Sérgio Henriques, tradutor, ensaísta e vice-presidente da Fundação Astrojildo Pereira, foi o condutor de um colóquio pedagógico a convite da Pós-graduação em Educação da UEMS. Ligado ao PPS – como a Fundação – e um dos organizadores das “obras” de Gramsci (cofundador do Partido Comunista Italiano) no Brasil, ele fala nesta entrevista, exclusiva ao Correio do Estado, sobre o atual cenário da política brasileira, da necessidade desta esquerda (o PT) de fazer autocrítica e que está na hora de haver um processo de entendimento político para mudar a situação.
CORREIO PERGUNTA
O senhor é ensaísta, tradutor, vice-presidente nacional da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), criada pelo PPS, e um homem de esquerda, que mantém um site com propostas que visam melhorar o cenário politico-social-brasileiro. Em linhas gerais, como deveriam se processar as mudanças neste cenário?
LUIZ SÉRGIO HENRIQUES O Brasil é um país desigual, um dos países recordistas de desigualdade no mundo. E, além disso, estamos vivendo num tempo em que as desigualdades estão crescendo. Para te dar um exemplo, esteve no Brasil no ano passado Thomas Piketty, economista francês, e o tema dele foram as desigualdades que estão crescendo em todo o mundo, inclusive nos países chamados desenvolvidos. O ponto é o seguinte: como a gente atua contra as desigualdades? Existe uma vertente na esquerda brasileira que simplesmente não aceita separar a luta contra as desigualdades da democracia política, da democracia representativa. Pelo contrário. Esta corrente acha que a democracia representativa, mal chamada de burguesa, é o melhor terreno, o terreno mais favorável para se enfrentar as desigualdades sociais. Porque ela permite a organização geral da sociedade, livre, autônoma, permite sindicatos, o livre associativismo, o poder é disputado em eleições, as eleições são baseadas em um princípio extraordinariamente interessante, que é uma cabeça um voto, e isso é uma conquista da civilização. Então, a Fundação Astrojildo Pereira, ligada ao PPS, que vem do antigo partido comunista, tem um carinho especial pelo tema democracia política. Nós nunca caminharemos e não trairemos a democracia política, de forma nenhuma, é nossa marca diferencial. A gente coloca em primeiro lugar a defesa da Constituição de 1988 e a defesa da realização, da concretização dos princípios básicos da Constituição. A mudança social é legítima, é necessária, o país é extremamente desigual, mas não sai disso, fora da Constituição, fora da lei, não tem salvação.
Concorda que o Brasil vive, além da crise econômica e política, uma crise ética?
Sim, está patente. Não adianta a esta altura culpar, como muitos culpam, “ah, todos fazem isso”, “eu faço porque o outro também faz”, ou culpar a colonização portuguesa, culpar o patrimonialismo ibérico. O culpado somos nós, particularmente as elites políticas, culturais, econômicas, elas têm de dar o exemplo, e este exemplo, lamentavelmente, está faltando. Nós temos aí dirigentes que encarnam a esperteza, a malandragem.... Nós vivemos uma democracia de massa, e ainda por cima numa época em que a transparência virou uma palavra de ordem mundial. E não é só uma palavra de ordem. Existem meios tecnológicos, hoje, para viabilizar a transparência e o controle, que são inéditos, como a internet e tudo o que ela significa em termos de mobilização, de conhecimento, rapidez, um mundo veloz. A convergência destes dois fatores – quer dizer, pleno regime democrático e as novas tecnologias e o tipo de mobilização que elas facilitam – gerou uma explosão de informação e uma demanda por transparência e mais democracia. E isso é muito positivo.
E os partidos, vivem uma crise de identidade?
Tem uma crise de identidade, sim, há uma crise de representação política. As regras podem ser mudadas em relação aos partidos, muitas vezes, alguns partidos brasileiros são cartoriais, quer dizer, viram quase que um capítulo do empreendedorismo; às vezes, negocia tempo de televisão, as alianças não são programáticas. As alianças não têm de ser ideológicas, as ideologias são um termo muito forte e muito fechado, muito excludente. Os programas podem ser diferentes, e muitas vezes as pessoas se aliam, os partidos se aliam, não pelos programas, não por identidade programática, mas por simples fisiologismo. Eu também acho que não há muito o que fazer. É preciso aplicar a lei que existe e aperfeiçoá-la à medida que os problemas vão aparecendo. Então, por exemplo, é razoável que os partidos não façam coligações proporcionais , que nas eleições para vereador, deputado federal, estadual, eles sejam obrigados cada qual a apresentar a sua chapa, sem se coligar, para que eleitor saiba exatamente em quem está votando. Os mecanismos estão aí, é preciso fazer com que sejam respeitados, com que a lei seja respeitada, de forma a ter um judiciário independente, o Ministério Público atuando. Isso são temas da democracia brasileira viva, como melhorar a democracia, como aperfeiçoar a democracia, são temas que vieram para ficar.
O senhor acredita que o Estado sempre funcionou a serviço das elites econômicas?
Sim e não. Se ele só funcionasse a favor das elites econômicas, nós não teríamos, não suportaríamos uma sociedade assim, de uma forma tão egoísta e tão limitada. O Estado brasileiro, muito diferente ao longo do tempo, não é só um instrumento de dominação – não é hoje, nem nunca foi. Ele também busca obter um determinado número de consenso. E, muitas vezes, mesmo sendo restrito, ele faz coisas interessantes. O Estado brasileiro tem diferentes encarnações, diferentes metamorfoses, e ele não é só repressão. Ele é repressão e consenso, ele é muito restrito e pode fazer coisas interessantes do ponto de vista de todos. E hoje este é o desafio. O Estado brasileiro, cada vez mais, tem de ser um Estado de todos. Apenas para exemplificar: imagine a revolução que não seria se nós tivéssemos um sistema de saúde efetivamente atuante! Seria uma revolução que facilitaria imensamente a vida dos subalternos, haveria aumento real de salários em termos de economia. Esta seria uma tarefa da esquerda. Um sistema de saúde que realmente funcionasse, que fosse o orgulho dos brasileiros. Ele teria impacto imenso na sociabilidade. Nós nos tornaríamos mais cordiais, mais alegres, mais seguros. Porque é como se o poder público, o Estado, junto da sociedade, junto do sistema de empresas, dos sindicatos, dos trabalhadores, daria para todos os brasileiros um auxílio nesta hora, que é a mais difícil, a hora da doença e da morte. Eu afirmo que este seria o caminho da revolução brasileira, um SUS poderoso, potente, equilibrado, viável, acolhedor, que protegesse a sociedade. Esta seria uma das frentes.
Há cerca de 11 anos, o PPS deixou a base aliada do governo. O que vocês perceberam naquela época que se consolidou ao longo dos anos, fazendo o País sair dos trilhos?
No meu ponto de vista, nós sempre fomos – mesmo o PPS tendo apoiado o PT em algumas eleições, inclusive 2002 – sempre vimos o PT como muito descuidado em relação às instituições. Eu me lembro de velhas frases da esquerda, velhas mesmo, que foram ditas até por dirigentes do PCB, frases infelizes, do tipo “nós temos o governo, estamos no governo, mas ainda não temos o poder”. Estas frases, estes raciocínios implicam uma ideia torta das instituições. É como se você tivesse de ser dono das instituições e usá-las em benefício de sua facção, da sua parte. Isso significa confundir partido, governo e Estado. É uma confusão que foi feita, por exemplo, nos antigos regimes comunistas, com resultados desastrosos.
O senhor diria, então, que a ruptura acima citada, naquela época, também passou por aí?
Sim, esta visão descuidada do PT em relação às instituições. Quando o Lula dizia: “Ah, o Congresso Nacional tem 300 picaretas”. Não sei se tem 300 picaretas no Congresso, nunca fiz esta conta – se há mais ou menos. Eu acho que o Congresso é a instituição central da democracia, e todas as pessoas que estão lá, bem ou mal, foram eleitas. Se tem 300, tem 299 ou 450, eu não sei. Eu sei que esta é a instituição central, todos os brasileiros têm de respeitar o Congresso Nacional. Mas se o Lula diz que tem 300 picaretas, como dizia, este é um recurso retórico muito problemático, porque uma vez no poder você vai agir em relação aos deputados, os representantes do povo, como se eles fossem picaretas - “estão à venda e eu vou comprá-los”. Eu acho que esta, no fundo, é a origem do mensalão e do petrolão. Ao que parece, ocupa-se uma estrutura empresarial poderosíssima, como é a Petrobras, e a minha interpretação destes fatos recentíssimos, que estão se desenrolando, é que houve tentativa de construir um sistema de poder com base, de certa forma, até centralizada, porque o PT é um partido centralizado, com base em uma ideia de ocupação do Estado, de ocupação das instituições, quando a esquerda deveria ser o primeiro setor político da sociedade, o primeiro, defensor da lisura, de uma relação democrática com as instituições.
Podemos afirmar que a cada dia o brasileiro acorda com mais uma novidade ruim no celeiro político. Como o senhor avalia os desdobramentos desta crise política brasileira?
É uma crise grave, é o esgotamento de um ciclo. E eu digo o seguinte, que quando saímos da ditadura, tínhamos um horizonte que era a redemocratização e a Constituinte, que faria uma Constituição democrática. Tínhamos um conflito interessante entre grupos dirigentes, com o velho MDB. Não havia só um horizonte político da redemocratização, como você tinha os homens e as mulheres para levarem isso adiante. Hoje, a sensação que eu tenho é como se estivéssemos em uma batalha e o último cartucho tivesse sido gasto. E o último cartucho foi a esquerda no poder. Porque o PT é esquerda, e não adianta dizer que não é. Nós temos de nos acostumar também, a meu ver, que podem existir esquerdas muito ruins – e me parece até que é o caso! Esquerdas que não cumprem aquilo que pretendem cumprir. É uma coisa dura de aceitar, assim como, inversamente, eu sou obrigado a admitir que podem existir, naturalmente e novamente na democracia, uma direita e um centro que joguem as regras do jogo democrático, que apresentem as suas propostas e que disputem na sociedade. E isso não é nenhum desastre, nenhuma calamidade pública. A origem da situação atual é como se nós tivéssemos gasto o último cartucho. A esquerda foi ao poder e esta esquerda, a meu ver, não esteve à altura dele, não cumpriu o esperado.
A reforma política, nos moldes que vem se apresentando, contribuirá para fortes mudanças?
Não, e pessoalmente eu sou muito cuidadoso, cauteloso com mudanças deste tipo. Acho que as coisas têm de ser paulatinas, o Congresso tem de adquirir credibilidade, força institucional para contrabalançar a hipertrofia histórica do executivo no Brasil. Precisamos ter cautela, manter as regras o máximo possível. Os critérios são transparência, todo mundo que doar para campanha tem de ser identificado, e nas duas pontas, quem dá e quem recebe; tem de haver controle, tudo de que estar na Internet em tempo real e tem de haver limite para quanto as empresas podem doar, para quantas pessoas podem dar. Tudo isso para baratear custos. As palavras são controle, transparência e limite, cumprindo das regras e regras o mais estáveis possíveis.
Quais caminhos democráticos deveriam ser tomados, ou retomados, pelos governantes para a reconstrução política/econômica/social brasileira?
Olha, o PCB saiu da ditadura com a crise do comunismo que o atingiu; nós estamos claramente numa fase pós comunista, em que se faz o balanço daquela experiência e vê que aquilo não tem o menor sentido mais, mas que pode continuar como inspiração. O PCB na ditadura tinha a política de frente democrática, que era uma política de entendimento da esquerda com os liberais, entendimento aberto, franco, reconhecendo o óbvio, o papel que diferentes forças políticas têm numa democracia. A democracia só é democracia porque tem diferentes forças políticas legais, legítimas, que disputam o poder, que se aliam, que combatem, criticam, assim é a democracia. E eu acho que hoje está na hora de se usar esta ideia do entendimento nacional, as pessoas têm de fazer algum tipo de pacto para sair desta complicação, tem de haver um processo de entendimento político. Desconfio que o PT terá de fazer uma autocrítica forte. E não sei se já amadureceu no PT –particularmente em sua principal liderança que é o Lula – a ideia é de que preciso fazer esta autocrítica, e não só de boca para fora. Eu penso que é preciso buscar a conciliação. A democracia é feita de duros embates, de conflitos muito intensos, agudos , mas é feita também de entendimento, bom senso e de conciliação.
PERFIL
LUIZ SÉRGIO HENRIQUES
De Juiz de Fora. Tradutor, ensaísta, editor do site “Gramsci e o Brasil” e um dos organizadores das obras de Antonio Gramsci, em português, e colaborador de O Estado de S. Paulo. É vice-presidente da Fundação Astrojildo Pereira (responsável por formação e estudos políticos do PPS), que acaba de lançar o livro “1964, as armas da política e a ilusão armada”, organizado por Caetano Pereira de Araujo. Trata-se de uma coletânea de textos, da qual Luiz Sérgio Henriques participa, entre outros.