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Crônica

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Maria da Glória Sá Rosa: "Ruas de Campo Grande"

Maria da Glória Sá Rosa: "Ruas de Campo Grande"

Redação

06/10/2015 - 00h00
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Olhar de uma rua
A quem quer que passe
Compreensão, amor
Perdidos na bruma
Carlos Drummond de Andrade

Sou fascinada pelo mistério que existe nas ruas. No silêncio da memória, recolho seus cheiros, seus ruídos, o jeito de receber ou rejeitar pessoas e acontecimentos. Porque as ruas têm sangue e alma, são extensões dos que ali viram transcorrer parte importante de suas vidas.

Desde criança, deixei nas paredes, no chão, nas árvores de Campo Grande muito do meu ser, das alegrias e angústias, que sobrevivem nas dobras do inconsciente de onde emergem pela força das sensações. Considero a rua um dos melhores programas para quem gosta de observar, sonhar.  Caminhar por ela representa para mim encontro com a verdade, com o prazer de sentir-me viva. 

Quando menina, morei na Rua 14 de Julho, onde todas as manhãs, ao ver passar os estudantes dos colégios Dom Bosco e Auxiliadora, de volta das aulas, sentia no ar a essência de uma mocidade, que acreditava sobreviver à passagem das horas. Lembro-me de um casal, que desfilava de mãos dadas,  abraçado, desafiando os costumes da época, sorrindo com a confiança dos que querem mastigar o futuro.

Certo dia, ele desceu sozinho, sem o ar de felicidade de outrora. A família tinha levado a namorada para estudar longe de Campo Grande, plantando a flor da solidão no coração do rapaz.

Professoras primárias, como Luísa Widal Borges Daniel e Ayd Camargo  Cesar, passavam carregadas de livros, comerciantes abriam sorridentes as  portas das lojas e até cavaleiros elegantes, como Hugo Pereira do Vale, montavam imponentes cavalos de raça.

Depois do jantar, juntávamos as cadeiras na calçada em conversas, que se prolongavam no silêncio de uma noite carregada de estrelas no céu de veludosa proteção.

À noite, a cidade tinha o encantamento de uma escuridão protetora, que permitia caminhar tranquilamente por suas ruas sem preocupação com  ladrões e outros malfeitores.

Nos anos cinquenta, muitas vezes, vi Campo Grande ficar de repente totalmente às escuras, depois de sair do Colégio Osvaldo Cruz, onde lecionava. Apesar disso, guiava tranquila meu carro pela Avenida Calógeras, sem temer uma abordagem, que nunca aconteceu.

A cidade tinha aura protetora, que nos envolvia com a suavidade do perfume de jasmins que vinha do Jardim Público, como era chamada a Praça Ari Coelho, e que recebíamos como presente de um dia de trabalho.

Participei de muitas cenas de multidão nas ruas de Campo Grande. Acompanhei o cortejo que levou à última morada Ari Coelho de Oliveira, o médico que realizou o parto de meu primeiro filho, pensando que aquelas mãos, que tanto se movimentaram para salvar vidas, agora repousavam inertes para sempre. 

O olhar de uma rua nos compreende, dá amor a quem se perdeu na bruma. Hoje vivo praticamente sozinha, no apto 1 da Rua Antônio Maria Coelho, 1.178, cujas paredes retêm lembranças de meu companheiro José Ferreira Rosa, de meu filho José Boaventura, que fazia vibrar nossos corações com  as notas de sua guitarra, dos sonhos de José Carlos, que aos 17 anos foi viver na Europa, dos risos de Luiz Fernando e Eva Regina, que aqui viram transcorrer as alegrias da infância.

Como nos versos de Apollinaire “les jours s’en vont et je démeure”. O tempo passa e eu fico só, umedecida de saudades.