Artigos e Opinião

CRÔNICA

Maria da Glória Sá Rosa: "Mombaça, meu reino do imaginário"

Maria da Glória Sá Rosa: "Mombaça, meu reino do imaginário"

Redação

27/10/2015 - 00h00
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Em minhas lembranças de Mombaça, o real e o imaginário se confundem em nebulosa de emoções. Frequentemente, me surpreendo pensando: Não terei  vivido no sonho os acontecimentos que estou tentando recompor? Porque,  apesar de nascido em Mombaça, vivi pouco tempo por lá, apenas os primeiros  anos da infância, quando éramos felizes e ninguém estava morto.

Minha mãe  contava que fui retirada a ferro de seu útero por uma parteira chamada  Benvinda; o parto acontecera de repente e não havia médico na cidade. Até  hoje tenho na testa o sinal do fórceps, que provocou uma ferida transformada  em cicatriz. Escapei  graças a uma promessa de minha mãe a Nossa Senhora  da Glória de quem tenho o nome.

A cidade tinha poucas ruas, algumas de nomes engraçados como Rua da Goela. No centro delas ficava uma pracinha, de encontro dos namorados. Em  frente, a agência do correio chefiada por minha tia-avó Cristina Aderaldo, que costumava colocar o lembrete urgentíssimo em todas as cartas que enviava.  Minha mãe, Cleonice Chaves e Sá, professora formada na Escola Normal de Fortaleza, era uma mulher inteligente, meiga, mas dotada de vontade firme no  que dizia respeito à educação dos filhos. Foi com ela que me alfabetizei. 

A  cartilha eram as manchetes de jornais.  Meu pai, Tertuliano Vieira e Sá, apesar  de ter apenas o curso primário, era dono de texto ágil e coerente, resultado das  leituras que as pessoas daquele tempo costumavam fazer.

Comerciante com  sangue de cigano, veio duas vezes a Mato Grosso do Sul, onde se fixou com a  família, para escapar às dificuldades econômicas da região nordestina.

Minha primeira lembrança de Mombaça é a residência de meus avós, José  Laurindo de Araújo Chaves, que foi vereador, e Etelvina Aderaldo Chaves, que gerou 17 filhos dos quais sobreviveram 11. Recordo-me das árvores  frondosas em frente à casa de tetos altíssimos na qual eu gostava de ficar à  janela, descascando pedacinhos da pintura envelhecida das janelas.

A grande diversão era o banho no Rio Banabuiú, com as mulheres em horário  diferenciado do dos homens, na inocente nudez de quem está em paz com o  mundo.

Outro passeio era ao sítio de minha-tia-avó, Antonina Castelo  (Tininha), mãe de Plácido Castelo, que foi governador do Ceará e de José  Aderaldo Castelo escritor e professor doutor da Universidade de São Paulo. 

Sinto o perfume do incenso das missas na matriz de Nossa Senhora da Glória,  e escuto as vozes estridentes que vinham do coro, enquanto revejo  os  banquinhos forrados de veludo, com o nome de cada dono numa plaquinha  dourada.

Depois do jantar, as pessoas reuniam-se na calçada. Uma atmosfera de  nostalgia provocava o retorno de lembranças dos que não estavam mais ali. 

Numa manhã, tragédia inesperada reuniu a cidade na casa de meu avô, depois  que um telegrama trouxe a notícia da morte súbita de minha tia Neuzelides,  em Campo Grande, onde se encontrava ao lado de meus avós. Tinha apenas  19 anos.

A solidariedade da pequena cidade em que abri os olhos para o mundo até  hoje está presente em minhas memórias. 

Mombaça são as raízes, que fremem,  quando recordo cada pequeno acontecimento disperso na fumaça das emoções. Muitos anos mais tarde, voltei. A cidade se refizera, tinha ares de  modernidade. Mas a pequena cidade de meus sonhos continua viva no reino  da memória onde viceja a realidade de nossa vida.

EDITORIAL

As bolhas que nos afastam da realidade

Enquanto uma parte do Estado amplia suas zonas de conforto, outra é pressionada a fazer mais com menos, arcando com o desgaste político e social das escolhas difíceis

17/12/2025 07h15

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A expressão “estar em uma bolha” deixou de ser apenas uma gíria de internet para se transformar em um retrato cada vez mais fiel da forma como a sociedade vem se organizando. Nas redes sociais, algoritmos direcionam conteúdos, opiniões e notícias de acordo com preferências previamente identificadas.

O resultado é um ambiente confortável em que quase tudo confirma aquilo que o indivíduo já pensa. Divergir passa a ser exceção e confrontar ideias, um incômodo evitado.

Fora do ambiente digital, a lógica das bolhas também se impõe. O isolamento crescente em condomínios fechados, verticais ou horizontais, reduz o contato cotidiano com o diferente. Ao limitar o convívio, o indivíduo perde a oportunidade de compreender realidades distintas da sua própria.

Torna-se, ao mesmo tempo, mais desconfiado e mais desinformado, conhecendo o mundo mais pelo “ouvir dizer” do que pela experiência direta. A realidade passa a ser filtrada, editada e, muitas vezes, distorcida.

As bolhas criam falsas impressões. Quando se consolidam em grupos, reforçadas pelo sentimento de pertencimento, geram uma perigosa falta de sintonia com o restante da sociedade. Problemas coletivos passam a ser relativizados, minimizados ou simplesmente ignorados.

A empatia dá lugar à autoproteção e o interesse público acaba substituído pela preservação de privilégios.

Nesta edição, mostramos um exemplo concreto dessa desconexão: o aumento do duodécimo para quase todas as instituições de Mato Grosso do Sul, mesmo após um ano marcado por crise financeira, enquanto cresce a sobrecarga sobre o Poder Executivo.

É sobre ele que recai, de forma quase exclusiva, o peso de enfrentar as dores reais da sociedade: da falta de recursos para serviços essenciais às demandas crescentes por saúde, educação, transporte e assistência social.

Essa discrepância orçamentária não é apenas um dado técnico. Ela reforça as bolhas institucionais. Enquanto uma parte do Estado amplia suas zonas de conforto, outra é pressionada a fazer mais com menos, arcando com o desgaste político e social das escolhas difíceis.

Trata-se de um desequilíbrio que aprofunda a sensação de injustiça e distancia ainda mais as instituições da realidade vivida pela população.

Seria desejável que integrantes das instituições que recebem repasses de duodécimo saíssem de suas bolhas. Que vivessem mais intensamente a realidade fora de gabinetes, relatórios e planilhas.

Que entendessem que, em tempos de dificuldades financeiras, reforçar privilégios e ampliar confortos institucionais não é apenas insensível, é socialmente injusto.

Romper bolhas não é simples, mas é necessário. Para indivíduos, para grupos e, sobretudo, para instituições públicas. A democracia e a justiça social exigem mais contato com a realidade concreta e menos acomodação em mundos protegidos. Caso contrário, seguiremos administrando percepções, e não problemas reais.

ARTIGOS

A Interpol e as lições do roubo ao Louvre: quando a cultura exige proteção global

O que alguns insistem em tratar como luxo é, na verdade, expressão de identidade coletiva, memória histórica e soberania cultural

16/12/2025 07h45

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A Interpol é amplamente reconhecida por seus sistemas de avisos e pela atuação no combate ao crime organizado transnacional.

O recente episódio envolvendo o Louvre, porém, recoloca em evidência um ponto ainda subestimado no debate público: crimes não violentos, como o roubo de bens culturais, também demandam tutela internacional qualificada.

O tráfico de obras de arte e de patrimônio histórico segue sendo um delito de baixo risco e alto lucro, alimentado pela opacidade do mercado e pela fragmentação das respostas estatais.

O que alguns insistem em tratar como luxo é, na verdade, expressão de identidade coletiva, memória histórica e soberania cultural. A Interpol parte dessa premissa, ao reconhecer a cultura como interesse jurídico protegido, merecedor da mesma atenção dedicada à vida, à segurança e à integridade física.

Nesse contexto, o Banco de Dados de Obras de Arte Roubadas da organização cumpre papel central: dar rastreabilidade a um mercado em que o patrimônio cultural pode, com facilidade, converter-se em saque.

A existência do banco de dados não é apenas simbólica. Ela permite a identificação de peças subtraídas, inibe a circulação ilícita e oferece suporte técnico às investigações nacionais.

Ainda assim, a eficácia do sistema depende de algo que nem sempre acompanha a velocidade do crime: cooperação internacional efetiva e compartilhamento ágil de informações entre agências de aplicação da lei.

Há espaço evidente para aprimoramentos. A ampliação do banco de dados com atualizações em tempo real, a integração mais ampla de museus, casas de leilão e colecionadores privados, além de protocolos obrigatórios de verificação de procedência, fortaleceriam significativamente o combate ao tráfico ilícito.

Do mesmo modo, penalidades mais rigorosas e treinamento especializado para forças policiais e autoridades alfandegárias são medidas indispensáveis para reduzir a atratividade econômica desse tipo de crime.

O episódio do Louvre serve como alerta. Proteger bens culturais não é capricho elitista nem pauta secundária: é defesa da memória, da identidade e do patrimônio comum da humanidade.

Quando uma obra é roubada, perde-se mais do que um objeto, perde-se um fragmento da história coletiva. A resposta, portanto, precisa ser global, coordenada e à altura desse valor.

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