Não posso precisar a data, porque a memória costuma às vezes misturar presente e passado quando tentamos definir lembranças, mas a precisão com que me lembro da cena dá-me a garantia de que ela permanece tão viva, como o trecho de um daqueles inesquecíveis filmes da Metro.
Um coral de adolescentes enchia de alegria o salão do Colégio Estadual com as notas de “Cachito, Cachito, Cachito Mío”, mas eu só tinha olhos e ouvidos para a menina da frente, que cantava com a segurança e um domínio de voz que nunca esquecerei. Foi meu primeiro contato com Sylvia Odinei Cesco, cujo talento pude apalpar nos longos anos em que a tive como aluna, amiga e companheira de inúmeras promoções culturais.
Além de excelente cantora, tinha especial domínio de texto, que revelava a futura escritora, autora de livros pelos quais deslizam a força do humor, a capacidade inventiva, os rumores do sonho e da poesia.
Numa época em que as representações musicais e teatrais começaram a dar sinais de vida em Campo Grande, foi participante e estimuladora dos festivais de música e teatro, nos quais esteve a meu lado, nas viagens que fizemos por diversos municípios do Estado, colhendo aplausos e lutando contra o tigre da censura, que nos atormentava nos anos de chumbo da ditadura. Como professora formada em Letras, fez das aulas espaço de abertura de ideias, trabalhando com os alunos textos de nossos melhores autores, enfatizando o peso de cada palavra em poesias e romances.
Foi um dos primeiros professores a divulgar a obra do poeta Manoel de Barros, de quem se tornou amiga, recebendo dele estímulo para desenvolver suas produções. Lembro-me de uma peça de sua autoria, em que apresentou quadros, poemas e livros de artistas locais. Ao longo do tempo, descobriu-se como escritora, ganhou prêmios, escreveu nos jornais locais e fez palestras nas escolas.
Depois de “Guavira Virou” e “Mulher do Mato”, lançou este ano dois volumes muito bem recebidos pela crítica: “Ave Marias Cheias de Graças” e “Histórias de Dona Menina”. No primeiro, numa mistura de realidade e imaginação, atesta seu poder de manipular o conto, utilizando o nome Maria como o símbolo de todas as Marias que amam, sofrem, resistem às durezas do tempo, sobrevivendo pela força da palavra.
O segundo, “Histórias de Dona Menina”, revela a capacidade da autora em renovar o jeito de escrever para crianças, numa linguagem totalmente original, que surpreende e encanta.
A menina que sonha tornar-se moça é a simbologia do sonho que reside no coração da criança que acredita num futuro de vida desabrochada. Dotada de muitos talentos, decidiu se entregar inteiramente à escrita, já tendo pronto novo livro para lançar em São Paulo.
Dedica-se inteiramente ao prazer da leitura e da escrita, que persegue obsessivamente, e ao prazer de recriar o mundo por meio da magia da palavra. Seu grande prazer, além da leitura, é explorar a identidade sul–mato-grossense em trechos que misturam personagens reais e fictícios, os quais trazem referências ligadas ao Pantanal e ao Cerrado. Cara amiga Sylvia Cesco, continue escrevendo e faça da literatura seu pão e o sol de sua vida.