Voltei a Araraquara, dias atrás. Cheguei de madrugada, quando Ara ainda não se levantara e Coara dormia. Como sempre, o cheiro de casca de laranja queimada impregnava a cidade.
Essas coisas da industrialização que acabam por marcar tempos e espaços. A cidade mudou muito desde que saí de lá para trabalhar aqui, mas não adianta querer que o tempo pare, faça voltas, elimine o que não é bom, fique só nas doces memórias.
As ruas de paralelepípedo foram asfaltadas, os ônibus elétricos foram substituídos por ônibus infectos, as andorinhas espantaram as árvores. O campus da faculdade foi tão aumentado, que tive dificuldade em me localizar naquelas salas.
Foi um tempo muito feliz, aquele em que busquei parte da minha formação profissional. Ali convivi com professores que me mostraram o saber generoso, o questionamento das leituras e a honestidade na transmissão do conhecimento. Foram meus modelos e até hoje presto a eles reverência.
Fernando Carvalho, mestre de literatura brasileira, faleceu há pouco, e um vazio abriu-se em mim, que o queria presente e eterno. Suas aulas eram viagens sem bordas. No início delas, retirava do bolso um pedaço de palha, cortava e desfiava o fumo, colocava um pedacinho de algodão na ponta, para filtrar, e só acabava de fumar no final da aula (naquele tempo, ninguém se importava). No intervalo, tomando café, aprofundava pontos discutidos em sala, contava histórias de sua vida no Rio de Janeiro e em Minas Gerais (era de lá). Quase um mito para nós. Diziam que era o autor da letra de “Ave Maria do Morro”, vendida por tostões a Herivelto Martins.
Não sabemos se sim, ou se não, mas apostamos, todos os que o conhecemos, no sim. Quero pensar que ele esteja, hoje, no morro, lá em cima, “pertinho do céu”.
De um mito a outro, Mário de Andrade escreveu “Macunaíma” na chácara de seu tio, Pio Correia, em “Ara Coara”, conforme registrado na última página do romance.
Não só por isto, mas, também, a biblioteca da cidade tem o seu nome. E, hoje, Mário está na boca do povo brasileiro. Talvez ficasse feliz com todo esse alarde acerca de suas intimidades. Que importa?
Morreu há 70 anos e continua, de um jeito ou outro, a tocar trombeta. No Marco (Museu de Arte Contemporânea), aqui em Campo Grande, está aberta a mostra “Mário de Andrade, etnógrafo, fotógrafo, poeta”, com fotografias que ele mesmo fez durante uma “Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, e pelo Marajó até dizer chega”.
Dá uma ideia do “Turista Aprendiz”, este personagem que soube, como poucos, compreender nossa cultura e falar das nossas contradições. Talvez não fosse de todo ruim voltar à leitura de “Macunaíma” e perceber a ironia da “Carta pras Icamiabas”, por exemplo. Muita gente continua a escrever e a falar como o Imperador.
Envolver Araraquara, a Morada do Sol, Fernando e Mário tem mais sentido do que posso imaginar, e me dou conta de que os três, no descobrimento da minha alma, são trezentos! O que não é pouco.