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Leia crônica de Theresa Hilcar: "Somos todos sabiás do campo"

Leia crônica de Theresa Hilcar: "Somos todos sabiás do campo"

Redação

16/11/2017 - 18h46
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A primeira experiência foi na porta da livraria. Fui pega totalmente desprevenida quando o passarinho - uma sabiá do campo, segundo me disseram, fez um voo rasante em minha direção e bicou a minha cabeça.

Fiquei então sabendo que um casal de passarinhos fez um ninho na árvore próxima à entrada, e desde então vem atacando as pessoas que entram no local. Tudo para proteger os filhotes, confortavelmente instalados e, claro, protegidos pelos pais zelosos. Mesmo entendendo o gesto, medrosa que sou, preferi sair pela porta lateral temendo novo ataque. 

Duas semanas depois, na calçada da Rua Cândido Mariano bem na esquina da Padre João Crippa eis que novamente me aparece outro passarinho que, tão bravo pela intromissão no seu espaço, bica várias vezes minha cabeça. Em vão tento espantar o pássaro que voa e volta em seguida fazendo a mesma coisa.

O ninho desta vez era no poste de eletricidade. Local sem o menor atrativo, bem diferente da árvore em frente à livraria. Duas mulheres que trabalham ali perto presenciaram a cena e me disseram que isto ocorre frequentemente.

Não sei se escolhem a vítima ao acaso, ou se percebem o medroso de plantão ou uma possível ameaça. Por mais bonitinhos que sejam, fico tensa ao me imaginar numa cena do filme de Alfred Hitchcock – Os Pássaros – sucesso dos anos 1960.

Só para relembrar o plot de Os Pássaros: Melanie (Tippi Hedren), uma socialite da cidade de São Francisco, vai até uma pequena cidade litorânea, Bodega Bay, para entregar um presente (uma gaiola com um casal de Love birds) para Mitch (Rod Taylor) por quem está interessada.

Deposita o presente secretamente na casa da mãe de Mitch, Lydia (Jessica Tandy). Melanie cria um triângulo tenso de relações entre ela, Mitch e Lydia, momento em que inexplicavelmente todas as espécies de pássaros começam a atacar a população com uma violência crescente.

Embora o diretor tenha negado qualquer intenção ou aspecto psicológico no filme, não faltaram interpretações de toda a espécie. Hitchcock negou tudo com veemência. Era apenas mais um filme. De suspense, claro!

Diferente do filme, a explicação para o comportamento dos sabiás em Campo Grande, conforme li na imprensa é o desmatamento excessivo que vem provocando a migração das espécies para a cidade. E esta é justamente a época da reprodução. Para eles somos os intrusos, a ameaça ao lar recém-construído, à segurança dos filhos.

Não obstante o susto e o desconforto das bicadas na cabeça, confesso que entendo perfeitamente o comportamento destas aves. Elas estão num lugar estranho, totalmente diferente do seu habitat e tentam proteger suas crias de qualquer ameaça. Que mãe ou pai não fariam isto?

Todos nós, em maior ou menor medida, somos um pouco passarinhos em algumas ocasiões. Principalmente quando vivemos em tempos tão estranhos, onde os valores mudam todos os dias e a ilusão de autossuficiência é supervalorizada.

Tempos em que os olhares não vão além do próprio umbigo e, na falta de palavra melhor, a crença é preciso ser bem-sucedido, não importa o preço a pagar. Tempos ameaçadores, inseguros com certeza.

Os pássaros, criaturas inocentes e irracionais, se viram como podem para não deixar seus filhotes à deriva, à mercê de um possível predador. Mas o ser humano ainda vai levar muitas bicadas para aprender a arte do amor e da generosidade. Tomara não precise uma revoada à moda Hitchcock.