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Leia artigo de Raquel Naveira:
"Maria Rita e Cora Coralina"

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"Maria Rita e Cora Coralina"

Redação

26/09/2017 - 07h48
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Esta fotografia da matriarca dos Loureiro, Maria Rita, lembra muito a poetisa Cora Coralina: olhos pequenos e inteligentes, nariz comprido, sorriso de lábios finos e enigmáticos.

Mulheres que dispensam legendas, pois elas próprias são legendas de uma época e de uma história: Cora, um século de vida no interior de Goiás, à beira do Rio Vermelho, no Brasil cerrado, no Brasil coração; Maria Rita, um século de vida na fronteira, à beira do Rio Apa, raia líquida que sinaliza limite, na extremadura do Brasil com o Paraguai.

Assim como Cora, Maria Rita era guia e mestra. Cultivadamente rude, lia e escrevia com sensibilidade (coisa rara em seu tempo), além de pintar, cozinhar, bordar, tecer com esmero, o que lhe valeu a alcunha de “Mãos de Ouro”.

Sua trajetória sofrida, sólida e estável, é um filme de costumes de psicologia e didática doméstica de antigas estações. Cheia de saúde e força, era sugada de um profundo enraizamento tribal e telúrico.

Uma mulher-árvore como aquela mangueira de sombra majestosa que se erguia no quintal atijolado de sua casa, palco de tantos encontros, conversas, brincadeiras, vozes infantis, desfile de moças vestidas de noiva com véus e tiaras de flores de laranjeira.

Sim, as filhas foram todas de sua mesma estirpe: receptivas no convívio, artistas, educadoras, restauradoras de crepúsculos: Elisa; Angelina, a Sinhara; Rita; Conceição; Brandina; Anaurelina; Celina; Ilídia e Glória.

Cada uma estendendo tenazes liames carnais e espirituais com sua prole, netos, amigos, as castas de sua gente.

Os filhos homens: Francisco, Salomão, Athanásio e Affonso, que recebeu o nome do pai, Affonso Loureiro de Almeida, enfrentaram as vicissitudes da lida pecuária, do trabalho rural, no meio das circunstâncias duras e concretas da fazenda Vaquilla, que ela recebeu por herança.

Esta outra fotografia do álbum, a casa de Maria Rita, em frente da qual passei tantas vezes, num canto verde e quente do Apa, é uma construção típica daquela região confinada.

Os degraus, as colunas da varanda, o pórtico quadrado remetem à Guerra do Paraguai, esse que foi o maior conflito armado da América do Sul. Onde estaria Maria Rita em momentos tão cruéis? Terá visto a soldadesca cruzando aquelas terras rumo aos morros de Aquidauana, famintos, andrajosos, atingidos pela cólera-morbo? Terá ela sido testemunha das histórias de sangue, violência de bandoleiros e isolamento, que ouvi contarem na minha infância, os olhos grudados na chama da lamparina?

Refugiara-se a menina Maria Rita na fazenda de seus tutores Eponina e Athanásio, que a protegeram com amor. A mãe a deixara como babá, entregue ao seu destino de moça pobre, obstinada, em busca de autolibertação.

Sem mágoas, ela reencontrou e acolheu  a mãe. Era alma purificada nas lutas e transformada na fé. Rendida a Cristo, preocupada em ajudar os pobres.

Agradava os sacerdotes, com um doce, um bolo com café, uma palavra de quem conhece o valor dos ritos, dos gestos, dos vínculos de seu grupo social. A missa de seu centenário foi celebrada por quinze padres que vieram dos Estados Unidos especialmente para a comemoração.

Maria Rita marcou o caminho de tantas pessoas, apenas com a lucidez de sua existência. Tirou sábias lições do seu cotidiano e do murmúrio do vento nos bambus flexíveis vergados sobre o rio. Grandeza de mulher desafiando a sucessão de anos, dias e horas, formando em torno de si o mito de quem guarda mistérios, segredos profundos.
Maria Rita se parece com Cora Coralina. É fato. Amo as duas.

Amo com melancolia pura o fim, a linha tênue da bruma da fronteira. Maria Rita é gênese de uma aliança que selei com meu esposo, seu descendente, num jardim fechado.

Para ela, oferto os versos de Cora, respondendo à pergunta de onde vinha a sua poesia: “Ela cascateia há milênios./ Minha Poesia... Já era viva e eu, sequer nascida./ Veio escorrendo num veio longínquo de cascalho./ De pedra foi o meu berço./ De pedra têm sido meus caminhos./ Meus versos: pedras roladas no rolar e bater de tantas pedras.”

Façamos festa. Somos pedras de um altar, de um edifício, de uma linhagem. Celebremos esse advento: a memória de Maria Rita, pedra fundamental de uma cidade, de uma família incontável como estrelas.

ARTIGO

Produtos livres de desmatamento nas estratégias da União Europeia

11/04/2024 07h30

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O Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento é um entre vários componentes do Pacto Ambiental Europeu (European Green Deal), que tem como objetivo final atingir neutralidade de emissões de gases de efeito estufa em 2050, com um crescimento econômico livre da exploração excessiva dos recursos naturais e sem deixar ninguém para trás.

Trata-se, portanto, de uma peça dentro de um quebra-cabeça bem mais complexo que visa tornar a Europa um continente sustentável e carbono neutro.

Desde 2019, o Pacto Ambiental Europeu apresenta diretrizes que vão sendo gradativamente regulamentadas, cobrindo de energia renovável a produção de alimentos, passando por transporte e construção civil.

Trata-se de um marco legal abrangente que aborda diversas questões ambientais, incluindo o desmatamento, como parte dos esforços da União Europeia (UE) para um novo modelo de economia verde. 

O regulamento para produtos livres de desmatamento, aprovado em 2023, disciplina as atividades dos importadores europeus que passam a ser responsáveis por garantir que os produtos adquiridos não venham de áreas desmatadas depois de 31 de dezembro de 2020.

As restrições entram em vigor no final de 2024. Os importadores são os responsáveis pela implementação das verificações nos países exportadores, as chamadas “due dilligences”. 

As implicações para o Brasil são significativas, pois a UE é o segundo maior comprador dos nossos produtos agropecuários. Enfrentamos sérios problemas de desmatamento ilegal na floresta amazônica, além de questões fundiários e sociais.

Outro ponto importante é que a legislação europeia não faz distinção do que é considerado desmatamento legal ou ilegal. A normativa claramente se refere a desmatamento em geral. 

Esse ponto vem sendo questionado pelo governo brasileiro, alegando que está acima das exigências legais do ordenamento jurídico do país. Argumenta-se que essa normativa representaria uma forma de barreira não tarifária aos produtos do Brasil.

Entretanto, o argumento contrário é de que a UE tem a prerrogativa de estabelecer os critérios para os produtos que farão parte das suas cadeias de suprimento. E, como o objetivo maior é a redução dos impactos ambientais do consumo dos próprios europeus, nada mais lógico do que exigir que seus fornecedores sigam padrões compatíveis com essa ambição.

Importante notar que há fortes reações ao Pacto Ambiental dentro da própria UE, como vimos recentemente nos diversos protestos de produtores rurais no território europeu.

Embora estejam sensibilizando parte da sociedade e postergando algumas limitações, dificilmente a insatisfação dos produtores europeus ou dos governos fornecedores de produtos agrícolas para a Europa terão força para uma guinada nos objetivos de longo prazo da UE.

Parece haver um sério proposito do continente em mudar completamente suas bases de desenvolvimento, mirando a transição para uma economia mais resiliente e de baixas emissões de gases de efeito estufa.

Ao Brasil cabe o desafio de entender essas normativas e entrar em um processo de negociação sério e embasado na ciência. Ainda há grandes lacunas sobre como serão feitas as verificações do desmatamento e, sobretudo, como serão mapeadas as origens de cada lote de exportação.

Precisaremos acelerar nossos investimentos em rastreabilidade e transparência nos processos produtivos, assim como no aprimoramento de plataformas de monitoramento territorial. Tudo isso em consonância e em estreita colaboração com os importadores e agentes da União Europeia.

Ainda estamos em um momento de discussão e entendimento junto aos agentes europeus de como o novo regulamento será implementado no Brasil. Entende-se que será um processo com aprendizado mútuo e um período de adaptação.

Os entes governamentais têm o papel de catalisar essa discussão entre produtores, processadores e exportadores brasileiros para que estejamos prontos para manter a liderança como fornecedores de produtos agrícolas para a União Europeia. 

 

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ARTIGO

Era uma vez em uma escola na Suécia

11/04/2024 07h30

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Depois de anos educando as crianças quase que exclusivamente com recursos digitais, o Ministério da Educação da Suécia começou a perceber alguns sintomas perturbadores nas suas crianças: deficiência na leitura e na compreensão de textos apropriados para a idade, muita dificuldade de escrever e, quando solicitadas, escritas realizadas apenas em caixa alta.

Mas o que mais chamou a atenção foi a percepção de que as crianças também começaram a apresentar dificuldades para expressar o que sentiam, pois lhes faltava vocabulário até mesmo para descrever cenas breves ou relatos de emoções simples.

Muitas dessas manifestações, resultantes da falta de exercício cognitivo e motor, assemelhavam-se a alguns transtornos psicológicos, e não é de se espantar que muitos pais possam ter procurado psicólogos, feito exames ou mesmo ministrado medicamentos, preocupados com a lentidão, o mutismo ou ainda com dificuldade de compreensão de seus jovens filhos.

O governo sueco, diante dessa constatação, resolveu dar uma guinada nas suas orientações escolares e agora estimula fortemente o uso de livros em vez de laptops, como também incentiva a leitura em voz alta, as rodas de conversa e a prática da escrita - inclusive ditados - com o objetivo de reverter o cenário que se desenhava catastrófico para o futuro.

Crianças que não são estimuladas desde cedo em atividades motoras e intelectuais podem ter dificuldades de desenvolvimento profissional na vida adulta, particularmente em um mundo onde a criatividade e a inovação são realidade em todo lugar. 

No último Pisa, divulgado em 2023, o resultado geral dos jovens estudantes suecos foi de 487, ante 499 registrado na edição anterior, de 2018. Em Matemática, a queda foi de 15 pontos e em Leitura, de 10 pontos.

Suficiente para que fizesse um país sério, como a Suécia, acender as luzes amarelas e buscar compreender as razões dessa perda de energia no aprendizado de seus jovens cidadãos, (para além dos efeitos da covid, que afetou de maneira praticamente igual os países participantes).

Uma das medidas que o governo buscou implementar em todas as escolas - embora na Suécia o programa e as orientações pedagógicas não sejam unificadas como no Brasil - foi: menos celular, menos laptop e mais livro, leitura, escrita e conversa. O básico que, desde mais ou menos cinco séculos atrás, tem orientado a ideia do que é ensinar e aprender.

 Lógico que esta constatação não implica em demonizar o uso de tecnologia em sala de aula, mas de usá-la com sabedoria, de forma que ela ofereça o que, de fato, não é possível conseguir por outros meios.

Mal comparando, é como o hábito de muita gente usar palavras em inglês para se referir a coisas ou situações nas quais já existe uma palavra em português perfeitamente cabível. Esse é o mau uso da língua estrangeira. O que não significa que não se deva aprendê-la e usá-la, muito pelo contrário.

A tecnologia compreende um conjunto de ferramentas e habilidades que deve servir para ampliar nossa capacidade de ler, raciocinar, produzir e nos comunicar. Mas, para isso, precisamos antes saber ler, raciocinar, produzir e nos comunicar.

O perigo do uso de celulares e laptops no ensino fundamental é o de diminuir ou mesmo obstaculizar  o desenvolvimento motor e cognitivo das crianças, além de dificultar a expressão de ideias, emoções e socialização, por falta de vocabulário capaz de se fazer entender quando relatar uma experiência.

O fenômeno hikikomori, que se refere aos jovens que abandonam qualquer contato social real e mantêm-se isolados em seus quartos, comunicando-se apenas pelas redes sociais, vem se alastrando por todo mundo, assim como a descrição de novos transtornos psicológicos associados à dificuldade de comunicação e socialização. A saída, porém, pode estar um pouco antes do consultório médico ou do psicólogo. Na boa e velha sala de aula.

 

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