Sancionada no dia 7 de agosto de 2006, a Lei Federal nº 11.340 aumentou o rigor das punições aos casos de violência contra a mulher quando ocorridas no ambiente doméstico ou familiar, prevendo, inclusive, a adoção de políticas públicas voltadas para prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher.
Por força do artigo 1º da conhecida “Lei Maria da Penha”, o Estado criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra mulher, nos termos do artigo 226, § 8º, da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pelo Brasil, estabelecendo, ainda, medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Bastou o transcurso de alguns meses para advogados, doutrinadores e julgadores darem a sua interpretação no sentido de que a Lei atropelou importantes preceitos constitucionais, de que estava contaminada por vício de inconstitucionalidade, visto não atender a um dos objetivos da República Federativa do Brasil, bem como por infringir os princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Até o Supremo Tribunal Federal pôr fim à celeuma, julgando a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, em 24.10.2007, pacificando entendimento no sentido de que os artigos 1º, 33 e 41 da Lei Maria da Penha são constitucionais, inúmeras foram as decisões reconhecendo a inconstitucionalidade da lei, provocando uma conturbação jurídica e social.
Todos temos consciência de que, na relação homem/mulher, o sexo feminino é a parte mais vulnerável, dada a sua fragilidade física (via de regra), emocional e, principalmente, em razão do longo período de submissão (atualmente não existente).
Reconhecendo essa situação, o legislador previu a criminalidade contra a mulher e obrigou o Estado a atuar preventivamente contra essa violência, estabelecendo a inclusão das agredidas em programas sociais. Reconhecendo as várias vulnerabilidades existentes, facilitou o acesso à Justiça e às necessárias medidas protetivas de urgência, muitas delas no campo do direito de família, para deter a escalada de violência.
Dentre essas medidas, a Lei facultou ao Juiz de Direito aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente: “III – proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação”.
Lamentavelmente, com o passar do tempo, constatou-se que essas medidas não surtiram o efeito desejado (coibir a violência contra a mulher), pois os esposos, companheiros e/ou namorados continuaram a ofender a integridade física e psicológica da mulher.
No intuito de frear essas práticas criminosas, cumprindo à risca o disposto no artigo 5º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), alguns magistrados adotaram a prática de determinar a prisão dos contumazes criminosos, que passaram a ser processados pela prática, ora do crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal Brasileiro), ora do crime específico de desobediência à decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito (artigo 359 do Código Penal).
Não poderia ser diferente, porque “A Justiça sem a força é impotente...” (Blaise Pascal). Contudo, ignorando que, “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (artigo 4º), os tribunais continuaram com a política de enfraquecimento da Lei Maria da Penha, mais especificamente de não vislumbrar no descumprimento às determinações judiciais que aplicam medidas protetivas de urgência, a prática de crime.
Segundo entendimento pacificado (atualmente) no Superior Tribunal de Justiça (intitulado como “O Tribunal da Cidadania”), “o descumprimento de medida protetiva de urgência não configura o crime de desobediência, em face da existência de outras sanções previstas no ordenamento jurídico para a hipótese” (AgRg no REsp nº 1.469.148); “para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista cominação de sanção específica” (REsp nº 1.492.757).
É preocupante porque, ainda que possível (em tese) a decretação da prisão preventiva, o legislador tem criado inúmeras dificuldades para o encarceramento dos criminosos, e tribunais têm firmado entendimento no sentido de que “Não cabe prisão preventiva se não resta cabalmente comprovada a desobediência a medida protetiva e ausentes qualquer das hipóteses do art. 312, mormente se o paciente é primário, com residência fixa e emprego certo” (HC 0378199-77-2010-MG).
Sem a pretensão de adentrar o mérito das decisões (que respeito), observo que, nos moldes da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, cujo artigo 5º prevê que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige”, o artigo 4º da Lei Maria da Penha também dispõe que, para sua interpretação, serão considerados os fins sociais a que ela se destina. Como a Lei Federal nº 11.340/06 foi concebida para tutelar a mulher que se encontra em uma situação de vulnerabilidade no âmbito de uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, é nesse sentido que seus dispositivos deverão ser interpretados, atentando o operador sobremaneira às peculiares condições das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Se a conduta de descumprir a determinação judicial em processos cuja matéria versa sobre a Lei Maria da Penha não configura crime, penso que o Estado dá com uma mão e, ao mesmo tempo, tira com a outra.