O pequeno João Miguel está entre o mundo dos sonhos e a realidade, abrindo os olhos a cada momento em que Cynthia estica um bracinho seu ou dobra uma perninha sua.
Ao lado dele está Maria Vitória. Ambos têm 4 meses de idade e estão instalados em um chão colorido e emborrachado ao lado das mães. Maria Vitória está com outro humor: enquanto o colega dorme, ela choraminga sempre que Cynthia a coloca de bruços, na sala cheia de brinquedos espalhados.
Esse seria um cenário comum e os gestos seriam corriqueiros em qualquer creche do país, por exemplo, não fosse o fato de Cynthia ser fisioterapeuta e da sala estar localizada na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), no Recife (PE).
As crianças têm microcefalia e os movimentos feitos pela fisioterapeuta são, na verdade, um estímulo precoce importante ao desenvolvimento integral dos pequenos pacientes.
Os casos da malformação neurológica aumentaram no Brasil desde o ano passado, em especial em Pernambuco – estado com maior número de notificações de microcefalia (1.846 casos, dos quais 490 descartados, de acordo com o último boletim divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde).
Para a comunidade científica, há cada vez mais indícios da relação entre a microcefalia e os casos de vírus Zika em gestantes. Outros problemas ligados ao sistema nervoso do bebê em formação também são estudados e já se fala em síndrome congênita do Zika, vírus transmitido pelo Aesdes aegypti.
ESTÍMULO PRECOCE
Diante desse cenário, assim que nascem, essas crianças iniciam uma rotina de exames para determinar que tipo de malformação elas têm, qual o nível de comprometimento do cérebro, da visão, da audição, entre outros.
Além disso, os bebês diagnosticados ou com suspeita de microcefalia são submetidos desde os primeiros meses de vida a intervenções de várias áreas, como fisioterapia, fonoaudiologia, otorrinolaringologia e oftalmologia. Trata-se de uma geração que cresce dividida entre a casa e o consultório médico.
Os dois pequenos companheiros de fisioterapia foram encaminhados pelo Sistema Único de Saúde para acompanhamento na AACD.
Maria Vitória e João Miguel estão em fases ligeiramente diferentes: a menina já fez algumas sessões e o garoto participava da primeira atividade na associação no dia em que a Agência Brasil foi até o local. João Miguel fazia acompanhamento em Caruaru, mas a mãe, Ana Paula de Souza Silva, de 30 anos, preferiu levá-lo à capital pernambucana para continuar a terapia.
Tímida, a agricultora Ana Paula ouve com atenção os relatos de outras mães e tem muitas dúvidas: sobre espasmos, movimentos diferentes, exercícios.
A troca de informações entre as mães é um ponto forte da terapia de grupo: “à medida que uma chega mais fragilizada, outra já está observando um ganho no desenvolvimento do filho, porque está seguindo as orientações. Uma ajuda a outra e assim se fortalecem”, diz a fisioterapeuta Cynthia Ximenes.
EXERCÍCIOS SIMPLES
Para começar a sessão, a fisioterapeuta coloca os bebês em almofadas adaptadas para os exercícios: trata-se de calças jeans preenchidas com sacolas, retalhos e papel, que são amarradas ou costuradas nas extremidades.
Uma ferramenta simples, mas que é um dos principais apoios para a condução da fisioterapia com os bebês e, principalmente, que pode ser recriada em casa pelas mães, como ensina e recomenda e profissional.
“Tudo o que a gente faz aqui a gente demonstra para as mães porque é muito importante essa continuidade [do tratamento] em casa e essa parceria entre família e terapia é de extrema importância para o desenvolvimento deles”, explica Cynthia.
Assim como os objetos usados na fisioterapia, os exercícios também são simples e replicáveis pela família. “A gente ensina as mães como alongar as mãos, as pernas, os braços, os pés, como fazer os exercícios em casa e principalmente proporcionar às crianças as variações de postura durante o dia”, ensina Cynthia.
DESAFIOS E BENEFÍCIOS
A esses primeiros estímulos em recém-nascidos dá-se o nome de estimulação precoce. A técnica é usada com qualquer criança que apresente fatores de risco, como bebês prematuros, e não apenas os microcéfalos.
“A gente começa com a intervenção em uma criança que você sabe que tem risco de ter um problema neurológico antes que apareça. A microcefalia é um sinal, não uma alteração no exame neurológico de força, movimento, desenvolvimento”, diz a neuropediatra Vanessa Van der Linden, gerente médica da AACD.
“Ayrton Senna foi um piloto exemplar. Por quê? Ele começou a treinar, treinar e ele usou o potencial dele muito mais do que o pouquinho que a gente usa. A reabilitação é baseada nisso, para desenvolver ao máximo essas conexões que façam com que uma área [do cérebro] ajude a função da outra, porque ela está lesada”.
A neuropediatra deixa claro, no entanto, que a reabilitação não significa cura das complicações neurológicas. “Reabilitação estimula o potencial que o cérebro tem. A gente não trabalha com 100% do nosso potencial, a gente vai usando aquilo que é estimulado."
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