Titular da 67ª Promotoria de Justiça dos Direitos Humanos de Campo Grande, a promotora Jaceguara Dantas da Silva Passos reconhece como é grande o esforço e, ao mesmo tempo, o privilégio de trabalhar em defesa dos grupos mais vulneráveis da sociedade. À frente desta promotoria inédita no Estado, criada há dois anos na Capital, ela lida com temáticas ligadas ao preconceito, à intolerância e à discriminação. Nesta entrevista, destaca como são feitas as ações, relaciona casos emblemáticos e diz que sonha com o dia em que não haja nenhum tipo de preconceito.
CORREIO PERGUNTA - A senhora é promotora da 67ª Promotoria de Justiça de Direitos Humanos de Campo Grande. Quais são os maiores desafios e problemas que encontra na promotoria?
JACEGUARA DANTAS DA SILVA PASSOS – Trabalhar com direitos humanos em nosso País já é um desafio. E trabalhar com os grupos mais vulneráveis é um desafio maior ainda. Eu lido com todas as temáticas de direitos humanos, com relação à intolerância, ao preconceito e à discriminação; lido com os excluídos e, efetivamente, os mais pobres e marginalizados da sociedade em Campo Grande. Esta promotoria, especificamente como direitos humanos, é um projeto que só tem aqui na Capital. Esta aqui é um projeto-piloto, é única e há poucos estados da federação com esta temática, com estas características. Ela lida com o combate ao racismo, atua na defesa dos direitos das pessoas em situação de rua, a temática da acessibilidade, da intolerância religiosa, a intolerância contra o segmento LGBT, entre outros.
Atualmente, o que há de maior destaque na atuação da promotoria em cada uma delas?
Em relação à comunidade LGBT, emitimos diversas recomendações para o município e para o Estado objetivando o resguardo, a lei do nome social. Existe um decreto-lei estadual e uma lei municipal e o maior pleito destas pessoas é que elas sejam chamadas pelos nomes com os quais se identificam. E nós expedimos estas recomendações objetivando o resguardo deste direito, obviamente, obedecendo as diretrizes traçadas pela Constituição Federal e também as diretrizes das próprias leis intraconstitucionais. Esta é uma conquista deste público e nós até contribuímos com este segmento LGBT para a derrubada do veto do prefeito Gilmar Olarte, que não aprovou esta lei municipal. A Câmara Municipal derrubou o veto e a lei pode ficar em vigor. No que se refere à área da mulher, estamos atuando na temática do combate à discriminação racial. Temos uma ação direcionada à corporação, à Polícia Militar e ao Corpo de Bombeiros, objetivando atuar na temática de gênero e no combate aos casos de assédio sexual por parte de superiores hierárquicos. É um procedimento que está em trâmite. Em relação ao tráfico de pessoas, nós temos um seminário que será realizado na próxima semana; estamos aproximando o movimento social do Ministério Público, atuando numa ação articulada para fazer frente a esta temática em relação à acessibilidade e o foco maior tem sido esta campanha, destinada a possibilitar às pessoas o uso da vaga especial. Instauramos inquérito civil para que todas as companhias aéreas, que dão acesso a Campo Grande, possibilitem uma solução para que o deslocamento de um deficiente físico, para adentrar a aeronave, não se faça de forma tão constrangedora. Em relação aos ônibus de Campo Grande, também há muita reclamação dos usuários com deficiência, por conta dos elevadores que necessitam de manutenção. A necessidade de acessibilidade às escolas municipais, estaduais, ao Hospital Rosa Pedrossian, ao Centro de Convenções Rubens Gil de Camillo. Temos, pelo menos, uns 20 procedimentos objetivando este segmento.
A senhora também tem um trabalho junto aos moradores de rua.
Em relação a eles, temos uns quatro ou cinco procedimentos que objetivam a implantação de serviços destinados ao acolhimento às pessoas em situação de morador de rua e também para fazer com que o município efetive o plano de ação, tendo como foco estas pessoas, e as políticas públicas destinadas a tirar estas pessoas do grau de vulnerabilidade em que se encontram. Posteriormente, num segundo momento, incluí-las na sociedade, nos programas de trabalho, de lazer, de cultura, de educação e saúde.
No que se refere aos moradores de rua, há denúncias por parte deles de atitudes não condizentes efetuadas pela Guarda Municipal de Campo Grande?
Está em trâmite um procedimento contra a Guarda Municipal de Campo Grande, a partir de reclamo de pessoas em situação de rua de que a abordagem em relação a eles tem sido muito violenta, que a guarda estaria desrespeitando, violando os direitos destas pessoas numa abordagem agressiva e abusiva. Instauramos inquérito civil para averiguar a situação e, assim que tivermos elementos, vamos propor ao município e à Guarda Municipal termos de ajustamento de conduta para adequação dos comportamentos que estão fora da lei.
A senhora participou de um caso nacionalmente conhecido, de uma mãe que perdeu dois filhos por conta do racismo. Em pleno século 21, o que a senhora considera ainda faltar no Brasil para erradicação do racismo?
Precisa haver uma cultura, educação em direitos humanos, os negros precisam ser incluídos, [haver] a tal da política pública, política afirmativa que é muito questionada, a meu ver ainda – respeitadas, obviamente, as opiniões contrárias –, mas ela é ainda uma necessidade. Nós não vemos os negros inseridos em posto de destaque, em processo dentro de universidades e mesmo dentro dos mais altos patamares da academia, dos órgãos públicos ou privados. O negro ainda está nos serviços que compõem a base da pirâmide social. As ações afirmativas se mostram necessárias e o processo educacional como um todo, porque nós precisamos assimilar, por meio de um processo educacional, para trabalhar os cidadãos do futuro, no sentido de que a igualdade é um princípio que tem que ser efetivado. Para que nada, nem a religião, nem a opção sexual, nem a cor, a raça ou a etnia, nos diferencie enquanto seres humanos. É preciso trabalhar por meio do processo educacional esta igualdade de todos perante a lei, para que ela saia do plano formal para o plano material. E em se tratando de comunidade negra, adentrarmos os espaços educacionais, produtivos do mercado como um todo, para estarmos inseridos na sociedade.
A senhora foi a favor do término do projeto “Quinta Gospel”, por acreditar que o município não pode contemplar tão somente a religião evangélica. Fora a Capital, a senhora já se deparou com o problema em alguma outra cidade do estado?
Não. Embora esta prática não seja um privilégio, uma ação isolada, mas de maneira muito particular, nesta atual administração a questão da religiosidade, e, em especial, os evangélicos, tem sido colocada num patamar de prioridade, como se a religião fosse pré-requisito para a ascensão, o usufruto de direitos. Quero esclarecer aqui que, em momento algum, eu sou contra os evangélicos. Isso aqui não é uma posição individual, mas, sim, enquanto operadora do Direito, enquanto agente político, no sentido de compreensão de que o Estado é laico e que não se pode privilegiar nenhuma religião sob qualquer circunstância. A partir do momento em que você segmenta e privilegia determinada linha religiosa, está criando divisões e oportunidades de intolerância. E isso é inadmissível dentro do Estado de Direito e dos princípios republicanos. A ação do Ministério Público foi contundente no sentido de inibir este tipo de política equivocada e segmentada.
A violação dos direitos humanos geralmente afeta mais as pessoas pobres. Essas, por sua vez, não possuem tanta voz para lutar por seus direitos. É possível ser um País respeitador dos direitos humanos sendo desigual?
Não, não é possível. Ainda que minha vontade fosse responder que sim. Mas a pobreza e a desigualdade social são componentes extremamente fortes na propagação da violação de direitos. A própria exclusão do processo educacional, para significativa parte da população, por si só já constitui um elemento violador de direitos. E para você exercer o direito, você precisa conhecê-lo e ter mecanismos de atuar na defesa dele. E grande parcela da sociedade está excluída. Sem dúvida alguma a desigualdade e a pobreza contribuem decisivamente para que sejamos um País violador de direitos.
Atualmente, muito se discute sobre os avanços em torno dos direitos humanos, ilustrados por planos governamentais, como o “Programa Nacional de Direitos Humanos”, cujo objetivo é passar à opinião pública a noção de igualdade e respeito entre diversos grupos que vivem no Brasil. Qual sua avaliação sobre os debates em torno dos direitos humanos no País?
Eles podem até ter avançado em termos de discussão, de teoria, mas de concretização de direitos humanos ainda falta muito. Nós temos um porcentual enorme de crianças e de pessoas sem acesso à educação, e esta realidade não tem mudado. Nós temos um contingente enorme de pessoas em situação de rua, temos enorme contingente de pessoas excluídas do processo social, em termos de direitos, e de acesso aos bens mais elementares, e temos um enorme contingente de pessoas que não possuem o mínimo ético para que possam exercer realmente a sua cidadania. E cada vez que a minha atuação é fortalecida no Ministério Público, na Promotoria dos Direitos Humanos, eu vejo quão longe nós estamos ainda de concretizar os direitos mais elementares. Nós estamos discutindo a efetivação de leis, com relação à acessibilidade, do ano de 2000, quinze anos já se passaram e a sociedade não absorveu, não existe a adesão social quanto aos direitos das pessoas que necessitam de acessibilidade. Realmente falta o princípio de se colocar no lugar do outro, mas tem, também, aquilo que nós, enquanto brasileiros, estamos longe de compreender, que é a necessidade do cumprimento das leis. Falta esta adesão social às leis. As leis não existem para o sentido figurativo, elas existem para serem cumpridas. Resumindo, falta uma cultura de solidariedade, de cumprimento de lei, de respeito ao próximo sobretudo. No momento em que nós nos colocamos no lugar do outro, passamos a verificar que aquela pessoa tem que ser respeitada dentro das suas especificidades, sejam elas pessoas com deficiência, o negro, a comunidade LGBT – quanto à orientação sexual –, a mulher. Em relação à questão da intolerância religiosa ou às adversidades como um todo, nós precisamos cultivar a ideia de uma sociedade plural, isso é a base da democracia. Não se estabelece democracia com pessoas de uma única raça, opção sexual, com uma só religião.
Quais casos com que a senhora tem trabalhado na promotoria, nos últimos anos, e que destacaria como emblemáticos?
Entre os diversos casos que estão sob a atuação do Ministério Público, eu elegeria o caso da Dona Cleonice (ela perdeu os dois filhos para o racismo), que, embora seja do conhecimento do público, é muito triste ver o sofrimento daquela mãe, e tenho como me solidarizar com ela não só por ser negra, mas por não conseguir entender que a gente esteja num mundo tão globalizado, tão informatizado, e a compreensão humana ainda cultue o racismo. O outro caso é a questão da administração pública segmentar a “Quinta Gospel” e outros casos nos quais estamos atuando aqui, temos que apurar com relação a cultos que estão sendo realizados e algumas pessoas chegam a contar que são obrigadas a participar deles como funcionários. Mais uma que eu não poderia deixar de citar é o preconceito, a discriminação em relação à comunidade LGBT. Na verdade, todos estes casos que eu mencionei servem de pano de fundo, ainda com toda a sensibilidade de lidar com a temática, com todo o meu envolvimento, para que eu tenha muita dificuldade de compreender a intolerância, o desrespeito e a discriminação. Todos estes casos ocorrem por conta disso, seja em virtude de orientação sexual, de raça, de uma pessoa ter uma deficiência ou pela orientação religiosa. Todos estes casos se resumem a uma dificuldade muito grande: em pleno século 21, nós ainda temos que lidar com o preconceito.