Os números indicam. Nos primeiros três meses do ano, MS registrou quase o total de casos de dengue do ano passado. Para compreender em detalhes a evolução do quadro desta doença e de sua “parente”, a chikungunya, entrevistamos o médico Rivaldo Venâncio da Cunha, mestre e doutor em Medicina Tropical pela Fundação Oswaldo Cruz, autoridade no assunto. Ele fala sobre as características da epidemia, que também se alastrou em São Paulo, sobre o relaxamento nos cuidados por parte do poder público e das pessoas, do perigo que é a chikungunya, da proximidade da utilização da vacina e da união que é necessária para vencer estas doenças.
CORREIO PERGUNTA – Nos primeiros três meses do ano, MS já tem notificados cerca de 8 mil casos de dengue (quase o total do ano passado). Dos 79 municípios, 20 têm alta incidência. Diante deste cenário, o que leva o Estado a, num ano, ter uma importante epidemia e no outro não? As epidemias são cíclicas?
RIVALDO VENÂNCIO DA CUNHA – Sim, as epidemias de dengue são mais ou menos cíclicas, a cada dois ou 4 anos. Isso em decorrência de que há 4 tipos de dengue. Lembrando que a pessoa que for infectada por um destes sorotipos ficará imune a ele por toda a vida, ou seja, a pessoa pode ter, no máximo, 4 vezes dengue, uma para cada sorotipo do vírus. Quando acontece uma epidemia preponderantemente por um tipo de vírus, num ano, no ano seguinte, geralmente, não se observa epidemia, a não ser que seja introduzido, naquela comunidade, um novo tipo do vírus. E isso vai girando ciclicamente. O que nós temos observado neste momento, em MS, é o aumento no número de casos quando comparamos 2015 com 2014. No entanto, as localidades nas quais estes casos estão sendo registrados, majoritariamente, têm uma certa diferença. Temos presença substancial em alguns municípios no interior do Estado, quando nos anos anteriores geralmente o carro-chefe era a Capital.
O que há de diferente nesta epidemia? A dengue estaria mais agressiva em comparação aos anos anteriores?
Creio que não. A dengue tem um padrão de ocorrência natural. O que nós temos observado é que, como acontece com outras situações na área da saúde no Brasil, em especial, mas na América Latina como um todo, nós nos preocupamos exageradamente – inclusive, a própria mobilização dos meios de comunicação – durante os momentos de crise e, superada a crise, há um certo relaxamento, entre aspas, há uma descontração tanto da população quanto das autoridades em relação às medidas preventivas. E isso tem feito com que os focos de criação do mosquito – que durante as crises diminui substancialmente –, passadas as crises, voltam paulatinamente a aumentar de novo e, aí, a quantidade de mosquito circulando passa a ser maior, consequentemente, a probabilidade de novas infecções também.
O caráter de adaptação do mosquito pode ter algum tipo de influência na variação epidêmica?
Com certeza. Nós temos observado, por exemplo, uma lenta, porém, contínua adaptação do mosquito a um ambiente anteriormente não agradável ao mosquito. Aquilo que nós falávamos de que o Aedes aegypti só se procria, só sobrevive em água limpa não é bem verdade. Em algumas localidades como Recife, Manaus, Salvador, tem sido observado focos do Aedes aegypti em ambientes que antes eram inimagináveis. Quer dizer, a adaptação do mosquito às condições não favoráveis ao ambiente faz com que ele adquira uma “resistência” a estas condições desfavoráveis e passe, então, a sobreviver numa frequência muito maior. Além disso, há constante observação do desenvolvimento dos mosquitos e há resistência deles aos inseticidas que são utilizados para destruí-los. É muito comum e utilizar inseticidas e, depois de alguns meses, os técnicos da área de controle de vetores observam que aquele inseticida não está fazendo efeito, não está destruindo aquelas larvas do mosquito.
Podemos afirmar que, em MS, há uma quebra de procedimentos tanto por parte da população – que não mantém os cuidados básicos de prevenção – quanto do atendimento médico precário, levando a casos graves e morte?
Também. Mas temos que frisar que a dengue é uma doença enigmática. Aliás, todos os grandes problemas de saúde pública não têm origem na saúde nem têm solução somente na área da saúde. Por exemplo, este gravíssimo problema de saúde pública, chamado violência, no Brasil não tem solução na área de governabilidade da saúde. É necessário que outros segmentos sociais, tanto do Poder Executivo como do Poder Legislativo e também da sociedade civil organizada ou não, envolvam-se para encontrar uma solução. A dengue é da mesma forma. Enquanto não houver a ação conjunta, enquanto não houver uma política pública que envolva todos os segmentos interessados no assunto, nós não teremos solução. Por exemplo, a saúde trouxe para si a responsabilidade de cuidar da dengue. Mas não está cuidando só do doente, ela está cuidando, inclusive, da limpeza do terreno baldio. Isso não é atribuição do SUS! É inconcebível que um agente comunitário de saúde, ou um agente de controle de vetor, vá limpar terreno baldio! Outro segmento da sociedade, do poder público, do meio ambiente ou do urbanismo tem que assumir esta responsabilidade. E, geralmente, estes setores cruzam os braços! Esta relação não está correta e é preciso envolver a sociedade como um todo.
É possível o paciente adquirir dengue hemorrágica mesmo que nunca tenha contraído a doença?
É um dos mitos que se criaram de que, para ter a forma grave de dengue com hemorragia ou não, seria necessário ter uma experiência prévia de dengue, ou seja, seria a segunda infecção que causaria dengue grave. Não é verdade. O mundo está cheio de experiências de pessoas que, inclusive, morrem tendo pela primeira vez o contato com a dengue. Então, o que acontece? Se nós pudéssemos colocar numa sala 100 pessoas com dengue grave... Quero fazer um parêntese: não gosto de chamar de dengue hemorrágica, porque tem muita gente que está morrendo sem hemorragia. Então, a gravidade não está associada ao sangramento. Tanto que a OMS, na nova classificação que fez, não usa mais esta terminologia “dengue hemorrágica”. Agora é dengue sem sinas de alarme, com sinais de alarme e dengue grave. Por exemplo, uma dor abdominal ou um vômito muito intenso e persistente é muito mais grave, na maioria das vezes, do que um sangramento. Voltando à explicação. Se nós colocássemos numa sala 100 pessoas com dengue grave, 95% ou 98% delas estariam tendo dengue pela segunda vez. Se nós fizéssemos o raciocínio anterior, o contrário, o inverso, colocássemos numa sala 100 pessoas que estão tendo dengue pela segunda vez, provavelmente, duas ou três, no máximo, terão dengue grave. Quando nós pegamos um caso de dengue grave, nós vamos ver que a pessoa está tendo dengue pela segunda vez. Agora, milhões de pessoas estão tendo dengue pela segunda vez, mas não têm dengue grave. Ou seja, está muito mais associado a uma resposta individual do organismo do que ao fato de estar tendo dengue pela segunda vez ou não. Então, talvez o correto fosse afirmar que um pequeno grupo de pessoas que, tendo dengue pela segunda vez, por alguma característica individual, genética ou predisposição ou porque tem algum problema de saúde de base, pode desenvolver a forma grave da doença.
Podemos dizer que a chukungunya, que apareceu recentemente, seria o “plus” da dengue? Ela veio para ficar, estaria substituindo a dengue?
Bem, a natureza é caprichosa, os mosquitos também e os vírus muito mais. Daqui a 5 ou 10 anos, mais ou menos, dengue será uma coisa do passado, como foi a H1N1. A vacina que está chegando vai resolver a dengue. E o que chegará forte é a chikungunya. Nós estamos conseguindo, depois de quase 70 anos de pesquisa, uma solução para a dengue. E aí começa a surgir a chikungunya, que é um vírus de outra família, não é irmão da dengue, apenas é transmitido pelo mesmo vetor, pelo mesmo mosquito, mas que é infinitamente mais grave. É mais grave por três razões principais: primeiro, além da dor na articulação, ela causa inflamação e esta inflamação nas articulações, nas juntas, pode ser tão intensa que impede a pessoa de desenvolver as atividades cotidianas, como, por exemplo, cozinhar. Por quê? Porque geralmente são acometidos os punhos e os tornozelos e as articulações das mãos. Há problema sério para digitar no computador, digitar no celular, dirigir, enfim. Porque não se consegue fechar a mão! A dengue dói, mas não inflama a articulação. Outra diferença fundamental entre as duas doenças é que a chikungunya pode cronificar, num porcentual elevado de pessoas, ela cronifica. Quem teve dengue há de saber o quão sofrível seria permanecer oito meses ou um ano e meio com dengue. Chikungunya é assim, pode cronificar. Há uma limitação substancial na qualidade de vida destas pessoas. Sem falar no impacto econômico e social que isso tem, tanto do ponto de vista da previdência como da abstinência ao trabalho, ao estudo, etc. A terceira diferença entre ambas é a chikungunya na mulher grávida infectada no finalzinho da gestação, como quatro, cinco, sete dias antes de o beber nascer; em pelo menos 50% dos casos, a criança vai desenvolver, dois ou três dias após o nascimento, a chikungunya. E mais que isso, 50% dos casos costumam ser graves, muito graves, coisa que não observamos com a dengue.
Existe algum novo tratamento para dengue ou vacinas sendo testadas de forma a prevenir a doença?
A vacina desenvolvida é apenas contra a dengue. Tem uma pesquisa de vacina contra a chikungunya, mas, na etapa em que ela está agora, até entrar no mercado, por baixo, nós teremos ainda algo como 10, 12 ou 15 anos, se tudo correr certo. A chikungunya não tem uma solução em curto prazo. Para a dengue, a vacina está pronta, em processo de ser registrada nas principais agências regulatórias do mundo. A expectativa é que, efetivamente, na virada de 2015 para 2016 esteja no mercado. Ela mostra uma proteção variável, razoável, que não é a mesma para os 4 sorotipos do vírus. Ela pega melhor os tipos 3 e 4, numa proteção maior a estes dois, principalmente em pessoas que já foram vacinadas contra a febre amarela. Em outras palavras, em médio prazo, a expectativa é que ocorra com a dengue o que aconteceu com a influenza H1N1. Que daquele “terremoto” que foi em 2009, paulatinamente, vá ficando como um problema menor.
Qual sua avaliação sobre os procedimentos de controle da doença no Estado?
Nós temos uma descontinuidade que é natural, há em vários outros lugares. Epidemia de dengue é quase impossível de se evitar, podemos evitar o impacto da epidemia. Mas é inconcebível, hoje, em 2015, uma pessoa morrer por dengue, inadmissível, não podemos nos conformar com isso. É uma doença grave, cujo tratamento é extremamente simples se for ministrado oportunamente, em tempo hábil. Também acho que, neste aspecto, nós precisamos dar um salto de qualidade. Por exemplo, há alguns anos, praticamente só o Laboratório Central Municipal de Campo Grande e o Laboratório Central do Estado fazem sorologia para dengue em MS inteiro. Não temos este instrumental em tempo hábil a nossa disposição. Temos, ainda, uma rotatividade razoável entre os profissionais de saúde capacitados para lidar com a doença. Outro fator é a transição municipal. Na virada, na substituição dos prefeitos e, consequentemente, dos secretários municipais de saúde, é que nós observamos o maior impacto. A maior parte das medidas de controle estão municipalizadas. De qualquer forma, olhando o passado e o que nos aguarda, já era para nós termos aprendido, porque são quase 30 anos ininterruptos de circulação de dengue no Brasil. Uma doença que não é nova, não é difícil de tratar, que não exige grandes tecnologias para abordagem medicamentosa. E temos que dizer que esta é uma responsabilidade de cabo a rabo, tanto da sociedade civil quanto do poder público.