Noites sem dormir, crises de alergia, ônibus lotado e falta de dinheiro para arcar com os gastos da passagem. Estes foram alguns dos obstáculos enfrentados pela jovem Carla Estfani Lopes dos Santos, de 21 anos, antes de ser aprovada em Medicina na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Filha de diarista e estudante de escola pública, ela resume que a rotina entre o sonho e a concretização “foi difícil. Quase impossível”.
Carla conta que quando concluiu o Ensino Médio, em 2012, ainda não estava convicta em relação ao curso de graduação. Na ocasião, ela cogitou Direito — porque trabalhava na Defensoria Pública do Estado — Economia e até Física.
Professor do Instituto Luther King, ONG que oferece cursinho gratuito para pessoas em vulnerabilidade socioeconômica, é quem orientou a estudante em 2013. “Ele disse: ‘pelo seu ritmo de estudos você vai longe. Faça Medicina! Vejo nos seus olhos um futuro brilhante como médica’”, lembra.
Ela julgou ser loucura o conselho dado pelo professor, mas considerou. “Fiquei pensando a noite toda. Sabia o quanto era difícil. Algo surreal para a filha de uma empregada doméstica”.
PALAVRA DE MÃE
Carla lembra da mãe recebendo a informação sobre a escolha dela por Medicina com desconfiança. O receio não tinha relação com o potencial da garota, mas com as condições financeiras da família.
“Eram frequentes os comentários de que eu não conseguiria. Que era difícil. Que eu não teria tempo para estudar ou que o filho de ‘fulana’ sempre estudou em escola particular e demorou ou não conseguiu passar”, recorda ela das críticas com as quais teve de lidar fora de casa.
Em pensamento, ela rebatia os comentários negativos. “Eu não era filha de fulana. Não nasci em berço de ouro. Comecei a trabalhar com 12 anos e mesmo assim sempre tirei notas boas na escola”, ponderava.
As críticas a impulsionaram a estudar mais e, depois da aprovação, viraram até motivo de agradecimento. “Me fortaleciam num efeito inverso ao proposto”, diz.
DIFICULDADES
Os comentários negativos foram uma das situações mais “leves” que ela teve de lidar. Na segunda vez que fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Carla recebeu nota 360 na redação.
“Tinha plena convicção que aquela nota não era correspondente aos meus estudos. Entrei com recurso, chorei e foi um ano perdido”.
Nesse período, ela enfrentava jornada dupla entre o emprego e o cursinho porque tinha que auxiliar a mãe com o orçamento doméstico.
Em 2015, foi preciso tomar uma decisão. “Eu não podia mais continuar no Instituto Luther King porque o máximo que o aluno pode ficar são dois anos e já tinha percebido que os dois [trabalho e estudo] eu não ia conseguir”.
Carla também pensava na dificuldade que seria estudar em casa, dividindo espaço com cinco irmãos e sem porta no quarto para manter o silêncio e privacidade necessários.
Ela optou por estudar, pediu exoneração e conseguiu bolsa em cursinho particular. “Ia com pão no estômago e pegava marmitex no almoço. Não era todo dia que tinha dinheiro para salgado ou frutinha em casa para matar a fome. Para enganar a fome eu tomei muita água. Veja pelo lado bom, sou uma pessoa hidratada”, brinca.
Em uma ocasião, ela faltou três semanas consecutivas e foi chamada na coordenação do cursinho, onde foi lembrada que não poderia faltar por ser isenta da mensalidade.
“Recordo bem de dizer que faltei porque não tinha dinheiro para o passe de ônibus. Foi um momento constrangedor e não desejo pra ninguém. Mas eu pegava a cópia dos simulados e fazia em casa no dia seguinte”.
Ainda durante esse período de estudo, a mãe de Carla ficou desempregada e ela teve o nome negativado. Pouco antes das provas, a jovem teve crises de alergia e já no dia dos exames teve de se desconcentrar do barulho de choro de bebê na sala ao lado. Em outra ocasião, outra candidata teve convulsão na sala e acabou desconcentrado todos os estudantes.
“Tinha plena convicção que se não tivesse de lutar com essas questões eu já teria sido aprovada. Mas acredito que tudo tem seu tempo, então respeitei o meu”.
Ela chegou a ser aprovada em Enfermagem e Odontologia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), mas a aprovação em Medicina só ocorreu neste ano.
“O desejo pela Medicina nasceu em mim como agulha no palheiro e hoje não me vejo fazendo outra coisa”, declara.
RECADO
Carla foi aprovada por meio das cotas sociais e faz duras críticas ao conceito de “meritocracia” — em que o sucesso profissional é consequência exclusiva do esforço individual. “Estudei muito, muito mesmo. Abdiquei de tudo o que eu tinha e dei “o sangue” para alcançar essa aprovação, mas tenho certeza que se não fosse ajuda de muitas pessoas eu não teria chegado até aqui”, diz ela, ressaltando ser um erro tratar casos como o dela como regra e não exceção.
Carla pontua ainda que a meritocracia é válida apenas quando todos têm as mesmas condições de acesso e, por este motivo, é questionável no Brasil. “Enquanto houver abismos entre o ensino público e o privado, a meritocracia será enaltecida para camuflar a ineficiência do Estado e as mazelas sociais”, opina.
A estudante declara ainda que “cotista não é preguiçoso e nem usurpador. É só observar na época do Enem as reclamações sobre a infraestrutura dos locais de prova. Se para alguns incomoda fazer dois dias de avaliação num ambiente assim, imagina para quem estuda lá desde o Ensino Fundamental?”.
FUTURO
Carla já está matriculada no curso e aguarda pelo início das aulas. Em Dourados, ela será mantida pela mãe “que saiu do trabalho e voltou a fazer diárias para me manter em outra cidade” e com auxílio de amigos.
Ela conta orgulhosa que será a primeira da família a entrar na Universidade e atribuiu o sucesso às exigências da mãe que “não aceitava menos de 8 no boletim e não comparecia as premiações da escola por acreditar que boas notas são obrigação”.
DICA
A jovem não gosta de falar quantas horas diárias dedicava aos estudos por acreditar que não existe “fórmula” e defender a ideia de qualidade da leitura. Mas afirmou que estudava até durante os fins de semana e evitava redes sociais.
E para aqueles que têm o sonho semelhante ao dela, Carla aconselha: "chore nas tentativas sem êxitos, mas levante no dia seguinte, ouça Raul Seixas e tente outra vez!".
Em relação ao futuro, a jovem afirma que “talvez, não fique entre os maiores médicos brasileiros, mas pretendo ser aquela que trato qualquer paciente com dignidade e respeito, como todo ser humano deve ser tratado” e antecipa “a Cruz Vermelha que me aguarde”, brinca.