Profissão: donas de casa. Elas escolheram cuidar do lugar onde moram e da família que constituíram e se afastar permanente ou temporariamente do mercado de trabalho. A opção não foi imposta pelos companheiros. Elas concordaram em ser oficialmente as responsáveis pelo lar por meio do diálogo.
Em Mato Grosso do Sul, existia, segundo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 221.674 mulheres casadas e economicamente ativas (parcela da população que tem entre 10 e 65 anos de idade). Entre elas, as que estavam desocupadas somavam 15.469.
Do ponto de vista técnico, o desocupado é o desempregado. Mas, na opinião das donas de casa, o trabalho doméstico é, sim, uma ocupação e tanto. Uma equação simples comprova essa afirmação: cozinhar, lavar e passar roupa, fazer faxina e cuidar dos filhos corresponde às atividades que podem ser terceirizadas por, pelo menos, duas profissionais disponíveis no setor de serviços – geralmente mulheres também –, a empregada doméstica e a babá. Supondo que cada uma receba um salário mínimo e meio pelo trabalho, a família que as contratasse teria de desembolsar R$ 2.640,00 mensalmente.
Mas a questão não é somente esta. Não só a economia leva mulheres a tomar essa decisão. Lígia Martins Sanches, 26 anos, por exemplo, teve outros motivos para sair do emprego e permanecer no lar.
Ela, que mora em Campo Grande, era vendedora de seguros de um banco, mas resolveu conversar com o marido e pedir demissão, pouco tempo depois de se tornar mãe.
“Engravidei e meu bebê nasceu prematuro. Tive seis meses de licença maternidade e cheguei a voltar a trabalhar, mas meu bebê precisava ainda de muitos cuidados médicos e eu sempre tinha que me ausentar muito do trabalho, aí comecei a receber alguns e-mails do meu chefe dizendo pra que eu tivesse bom senso nas minhas ausências. Até que em maio deste ano, meu filho teve uma broncopneumonia e eu e meu marido decidimos que eu sairia do emprego”.
Nem todas as mulheres que passam pela situação podem deixar o trabalho, mas felizmente a mãe contou com apoio de toda a família para levar a decisão adiante.
Ainda assim, Lígia acha o trabalho doméstico desgastante. “Eu me sinto bem realizada em poder ficar com meu bebê, mas não vou mentir, ficar em casa cansa muito, até porque serviço doméstico nunca acaba. Não me sinto em uma posição inferior a mulheres que trabalham fora, pois sei que esse período está sendo muito importante para o desenvolvimento do meu filho e é ele quem importa no momento”. Ela planeja ocupar-se na empresa do marido futuramente, quando Davi, o filho do casal, entrar em uma escola infantil.
No caso de Yara Umberto, 55 anos, ser dona de casa é uma resolução definitiva que tomou há sete anos. Ela também mora na Capital e já trabalhou como enfermeira, mas, hoje, orgulha-se de ter optado em largar o emprego para cuidar das netas.
“Foi principalmente por causa delas. Primeiro, foi por causa da mais velha, que hoje tem 9 anos, e mais recente com a pequena, que tem 1 aninho. A mais velha não se adaptou à creche e a outra eu nem quis que a minha filha tentasse deixar. É melhor ela entrar na escola quando tiver a idade”.
Quanto a limpar, cozinhar e fazer todas as outras tarefas de casa, a opinião da ex-enfermeira é a mesma da maioria das pessoas. “Não rende, é todo dia e é praticamente sempre igual. Eu me planejo para terminar tudo logo de manhã para ficar a tarde inteira com minhas netas”.
COISA DE MULHER
Por não trabalhar, Yara não se sente inferior às mulheres trabalhadoras ou ao marido, que trabalha. “Sou muito bem resolvida. Tem gente que acha que dona de casa não trabalha nada, mas é o contrário. Eu sempre gostei de trabalhar fora. Ser dona de casa foi uma decisão que tomei sozinha”.
Ela não acha que serviço doméstico é exclusividade da mulher, mas ainda reconhece como privilegiada aquela que tem um marido que compartilha as tarefas ou tem uma “secretária do lar” trabalhando em casa.
O perfil da antiga “Amélia”, a mulher “de verdade”, que não tinha exigências e tantas vontades – homenageada no famoso samba de Ataulfo Alves e Mário Lago –, ficou mais raro à medida que o ambiente doméstico passa a não ser o único lugar reservado à mulher moderna e o mercado de trabalho e os bancos de universidade são reivindicados e frequentados por elas.
Segundo a pesquisadora e professora de Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Vivian Veiga, as mudanças no contexto socioeconômico também corroboraram para a abertura do mercado de trabalho à mulher. “Primeiramente, a possibilidade de a mulher se inserir no mercado de trabalho é, obviamente, a conquista de um direito, mas mais do que isso é uma necessidade do sistema capitalista. Visto que as mulheres estão associadas a atividades mal remuneradas e inferiorizadas (graças as construções sociais e culturais que colocam as mulheres como seres inferiores e incapazes), elas são bem-vindas ao modo de produção, sobretudo nos momentos de transformações e nas crises econômicas”, explica.
Mesmo assim, muitas mulheres ainda permanecem como donas de casa não por anseio próprio, mas para corresponder ao velho padrão. “Afinal, ainda exaltamos a ‘bela, recatada e do lar’em contrapartida às mulheres que têm uma vida pública”, complementa Vivian.
ESCOLHA
Nesse viés, ser dona de casa por livre e espontânea vontade, hoje, é sinal de que as mulheres têm poder de escolha.
A conquista do direito ao trabalho é histórica, um avanço cultural dos mais significativos, mas não é obrigação de nenhuma mulher. É o que pensa a também a socióloga e ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras, Nathália Ziolkowski.
“As mulheres têm que ter liberdade para fazerem suas escolhas e se sentirem felizes e realizadas com elas. Vejo o direito de escolha como legítimo. Quando a mulher é proibida de frequentar o mercado de trabalho e é induzida a ficar em casa, há uma relação de violência”.
Uma questão preocupante, segundo Nathália, é quando, mesmo trabalhando fora, a mulher ainda acumula as tarefas domésticas e não as divide com outros moradores. “Enquanto esse processo de as mulheres saírem do espaço doméstico vem acontecendo, elas retornam para dentro de suas casas e ainda assumem as mesmas tarefas que cabiam somente a elas no passado, porque a mentalidade das pessoas ainda não acompanhou essas mudanças”.
Outra barreira é a desigualdade salarial em relação aos homens. Em Mato Grosso do Sul, essa realidade é assustadora. Segundo o IBGE, o Estado é líder em termos de disparidade salarial entre os gêneros.
IMPRODUTIVIDADE
Lidar com o estigma da improdutividade do trabalho doméstico pode gerar algum constrangimento à mulher que se dedica ao lar.
Mesmo seguras das escolhas, é possível que as donas de casa ainda enfrentem resistência ao declarar a opção que fizeram. Isso pode acontecer, segundo Vivian Veiga, principalmente pela banalização do ambiente doméstico. “Deslocamos toda a importância e a significância da vida em sociedade para a esfera pública, aquelas que são responsáveis por essas atividades são vistas como indivíduos de menor importância. Claro, essa visão mostra como nossa sociedade é cega ao não enxergar que, se transitamos na esfera pública, é porque todas nossas necessidades mais básicas são satisfeitas no âmbito privado. O público e o privado são faces da mesma moeda”.
A dona de casa Gláucia Barbosa, 44 anos, afirma exercer esse papel sem qualquer constrangimento.
“Sempre me senti tranquila, já fui muito julgada, mas isso nunca abalou minha posição, porque eu acreditava nos motivos pelos quais havia tomado essa decisão. Acho que não é o trabalho que faz com que você se sinta secundária, isso acontece se você não for atrás de conhecimento. Eu não me sinto nem um pouco à margem da sociedade, acredito que exerço uma posição muito importante dentro da minha casa. Não é uma coisa exaustiva, que me deixa infeliz. Acho que me engrandece como pessoa sim, porque administro a casa sozinha e não me sinto menosprezada. Sei que abri mão de trabalhar por um motivo muito importante, não foi por obrigação, por ter sido mandada nem nada do tipo, foi porque eu escolhi, então nunca me senti rebaixada por isso. Me deixa tranquila ver que meus filhos cresceram bem e que tudo valeu a pena, fiz o melhor que pude”.