Imagine um campo grande e remoto, com uma pequena vila de casas e plantações, alinhado a um horizonte aberto. É 1889 na linha do tempo, você avançou um pouco e agora está na recém-fundada Campo Grande, um ponto estratégico de comunicação e serviços, localizado ao sul do velho Mato Grosso.
Nesse “pulo”, aquele antigo campo abriu caminho para um centro de trabalho, comércio e moradia pleno – se bem que ainda dentro de um contexto predominantemente rural. Tente visualizar que, a essa altura, Campo Grande já é uma cidade que verticaliza casarões e hotéis, põe seus trens nos trilhos, ostenta o boi e cresce com a força do trabalho do migrante e do imigrante. Sobretudo, vai criando nesse percurso seus símbolos culturais de crescimento. Agora, volte ao presente.
ESQUECIMENTO
Na semana passada, a demolição de um conjunto de propriedades que ficava no final da Rua 14 de Julho, no Bairro São Francisco, despertou – e ao mesmo tempo apagou – parte do passado da Capital. Os imóveis, que ficavam em frente à Praça São Francisco, pertenceram ao comerciante Luziano Santos e, na década de 50, foram um grande armazém que abastecia as principais fazendas de Campo Grande. Depois, tornaram-se o bar Vai ou Racha, outro ponto que recebeu personalidades da cidade e rendeu histórias. Em 2017, o terreno dará espaço à filial de uma rede nacional de farmácias.
Mais de um século se passou desde que as primeiras comitivas de moradores chegaram por aqui. A preservação da memória desse período no tempo presente é uma das condições mais importantes para que o crescimento possa ser, então, chamado de desenvolvimento. No passado, está a identidade campo-grandense em suas raízes e singularidades, bem como uma série de acontecimentos que refletem erros e acertos. Mas que vestígios sobraram para que se mantenha a história viva?
Dá para citar pontos como a Morada dos Baís, artigos presentes em museus da cidade, os paralelepípedos ainda não sobrepostos pelo asfalto e a Casa do Artesão, por exemplo. Vale destacar que, além deles, há outras dezenas de símbolos históricos escondidos ou esquecidos, que são recortes igualmente valiosos da memória da cidade.
ROTUNDA
Também na 14 de Julho, a Rotunda é um dos pontos de esquecimento na cidade. Tapado por um muro quebrado e algumas árvores, o local geralmente passa despercebido pelas pessoas. Faz parte do Complexo Ferroviário da Capital, patrimônio tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). É administrada pela prefeitura, que pretende torná-la um centro cultural, mas por enquanto serve apenas como ponto de encontro para usuários de drogas.
A linha férrea de Campo Grande serviu para transporte de passageiros que fugiam das cheias do Pantanal e para levar e trazer uma diversidade de produtos. Com sua desativação, os vagões ficaram abandonados na rotunda. Hoje, resta apenas uma estrutura depredada.
USINA
Até 1910, a Vila Campo Grande, como era chamada, vivia às escuras. A primeira rede de abastecimento de energia elétrica foi montada na Rua 26 de Agosto, quase esquina com a Rua Calógeras. O jornalista e escritor Edson Contar, pesquisador da história da Capital, conta que, no entanto, para atender ao ritmo de crescimento da vila e aumentar a capacidade de abastecimento, foi preciso montar uma usina hidrelétrica. Montada em 1924, ela atendia apenas a uma parte da cidade, especialmente os comércios e as residências de moradores com maiores condições financeiras.
Pouca gente sabe da existência da usina e que seus sinais continuam no mesmo lugar, mais de 90 anos depois. Ela fica no Córrego Ceroula, na saída para Rochedo. Atualmente, é ponto de passagem de grupos guiados pela agência de turismo Sopa de Pedra, da Capital, que explora trilhas e caminhadas rurais em Mato Grosso do Sul. Uma das guias e sócias da agência, Elijane Coelho, diz que o que sobrou da construção hidrelétrica são apenas engrenagens e outras partes mais pesadas do maquinário. Ela observa também que nas proximidades há muito lixo e, aparentemente, são realizadas festas no local.
Durante as trilhas, Elijane e o marido e sócio, Nilson Young, procuram estimular os trilheiros a viajarem até a Campo Grande do século passado. “Valorizamos bastante a construção. As pessoas sentem dificuldade de chegar até lá e, então, durante o caminho, pedimos que elas imaginem como foi construir aquilo naquela época e como foi o funcionamento da usina por 50 anos”, diz Elijane.
CABEÇA DE BOI
Outro símbolo histórico que é desconhecido por muitos é a cabeça de boi. Hoje é representada por um monumento que fica em frente à Praça das Araras, no Bairro Amambaí. De fato, antes havia a ossada de um crânio de boi.
Edson Contar diz que ela foi fixada por um açougueiro, para orientar o caminho das fazendas da antiga Campo Grande, e só mais tarde foi retirada e substituída pelo monumento alto que se vê próximo à Orla Morena.
O escritor lamenta que a história não seja contada pelos passeios turísticos da cidade. “Passam por aqui, falam que é a Praça Cuiabá, mostram as araras esculpidas e dizem que ao lado está a cabeça de boi, muito rapidamente. A própria cabeça estava plantada lá, é uma história interessante que precisa ser contada.”