Rubens Valente e Danilo Nuha, dois jornalistas formados em Mato Grosso do Sul que fizeram nome e carreira país afora, lançaram neste mês os livros “Os fuzis e as flechas – A história de sangue e resistência indígenas na ditadura” e “Nada consta”, respectivamente.
O primeiro traz um resgate histórico e, ao mesmo tempo, denúncia sobre episódios de violência e repressão vividos por povos de todo o Brasil no período militar. No segundo, o autor transforma a trajetória pessoal – que começou em Campo Grande e envolve aventuras que se passam no Japão e Bali – em uma narrativa que fica entre o real e o inacreditável.
“Os fuzis e as flechas”, lançado pela editora Companhia das Letras, é o segundo livro-reportagem de Rubens. Ele estreou no gênero com “Operação Banqueiro”. Atualmente, é repórter especial da Folha de S. Paulo. “Nada consta” é o segundo livro de Danilo – o primeiro foi “Sonhos Guaranis – A Poesia de Paulo Simões”. Hoje, ele é assessor de imprensa do cantor Milton Nascimento. Confira, a seguir, entrevista com os dois:
CORREIO DO ESTADO – A sua formação acadêmica e experiência profissional em Mato Grosso do Sul – Estado onde vive a segunda maior população indígena do País – influenciaram de alguma forma a escolha do tema?
RUBENS VALENTE Sim. Eu mudei com meus pais para Dourados em 1982 e lá tive o primeiro contato com índios. Me formei pela UFMS e fui desenvolvendo o interesse em falar sobre as questões relacionadas a esses povos durante esse período. Virei repórter em 1989 e, ao longo da década de 90, comecei a pensar em explorar o tema em um livro. Nessa época que eu tive a oportunidade de conhecer diversas Terras Indígenas pelo País, saber o que estava se passando em cada uma delas e, principalmente, ouvir e coletar relatos dos indígenas, ter um contato mais próximo. Fui até elas por meio de viagens a trabalho, primeiro como repórter enviado por veículos de Cuiabá e, depois, por jornais como O Globo e a Folha de S. Paulo. Esses contatos foram fundamentais. Nesse período eu ainda pensava em um livro mais amplo, indigenista. Só mais tarde é que percebi que havia uma lacuna na bibliografia sobre os indígenas no período militar. Existem obras que falam da repressão a algumas etnias nessa época, mas não se encontra um quadro geral sobre várias etnias. É o que eu me proponho então a fazer no livro.
Quanto tempo você levou no processo de pesquisa? Teve dificuldades quanto à busca ou acesso a documentos do período militar?
Considero que a pesquisa começou a partir dessas primeiras experiências. Um período que me dediquei com mais afinco ao livro foi quando consegui licença do trabalho de repórter da Folha por um ano para fazer entrevistas e trabalhar nele. A documentação escassa é uma dificuldade em relação a todo o período militar. Consegui muita informação especialmente a partir de 2008, quando o governo federal abriu os primeiros documentos do Sistema Nacional de Informação (SNI), um braço da repressão da ditadura militar presente nos órgãos federais. Havia uma unidade do SNI na Fundação Nacional do Índio (Funai) chamada ASI, que era os olhos e os ouvidos do SNI na Funai e funcionava como uma espécie de assessoria. A documentação relacionada foi sendo liberada aos pedaços para consulta pública, e fui lendo. Mas o que foi decisivo para a pesquisa foi quando, em 2012, o governo federal reconheceu o direito de se pesquisar por servidores na Funai. Então, cada um deles tinha um dossiê de documentos em caixas que poderiam ser acessados. Nessas caixas ia coletando informações. Encontrei muitos documentos que ajudavam a entender a história dos povos indígenas do Brasil nesse período e fui os remontando, etnia por etnia e episódio por episódio.
Que fatos significativos você apurou durante a produção do livro-reportagem?
O que ficou claro na minha pesquisa é que, primeiro, havia uma política de acobertamento. O governo militar tinha medo que os atos de repressão contra os índios viessem à tona, e receio principalmente da opinião pública internacional. Se essas informações viessem a público, o governo teria que se explicar a organismos internacionais, especialmente os que defendiam os Direitos Humanos. Outra coisa é que se sabia exatamente o que estava acontecendo em relação a esses povos. Os dossiês que encontrei nas pastas dos servidores da Funai, por exemplo, revelam episódios em que dezenas e dezenas de índios foram mortos em um único episódio. Fatos como esse chegavam até o governo.
DANILO CUNHA
CORREIO DO ESTADO – O que te levou a escrever um livro no qual coloca elementos de sua trajetória pessoal em primeiro plano? Quando percebeu que sua vida daria um livro?
DANILO NUHA Acho que eu não conseguiria escrever algo que não fosse relacionado à minha vida pessoal. Pois tenho uma dificuldade gigante até pra inventar nome de personagem, imagine criar uma história inteira. Sendo assim, minha única opção foi jogar minha própria vivência neste livro. E eu percebi que isso poderia ir pro papel quando eu contava alguns desses capítulos em mesa de bar e as pessoas gostavam. Mas, até isso acontecer de verdade foi um processo lento, que demorou dez anos.
Lendo a sinopse do livro, e conhecendo um pouco da sua história, nota-se que você sabe o sentido exato do termo choque cultural. Você sentiu na pele as diferenças entre as culturas. De alguma forma, ser criado em Mato Grosso do Sul o ajudou a superar os problemas desse processo?
Ter sido adotado por uma família de imigrantes japoneses em Campo Grande foi fundamental. Sem falar ainda na forma como isso aconteceu: deixado num balcão de boteco em frente ao Mercadão. Essa mistura entre putas, travestis, garçons, taxistas e japoneses foi o molde da coisa toda pra mim. Além disso, o bar onde eu fui criado era muito famoso nas madrugadas do centro, e até hoje muita gente me encontra na rua e fala disso.
Ao escrever um livro, o autor iniciante sempre traz uma carga de referências. No seu caso, é possível estabelecer quais são?
Como não tenho nenhum recurso técnico de escrita. Digo, talento mesmo (risos). Foi tudo feito na base da força, com uma luta brava na hora de escrever. Por isso tive como primeira referência o Rap dos Racionais. Pensei o seguinte, se os caras sem quase nenhuma formação específica para escrita conseguiram passar ideias magníficas para o papel, eu também poderia conseguir. Claro que nunca vou ter o alcance deles, lógico! Mas como inspiração concreta de como fazer sua própria correria o crédito vai todo para os Racionais. E para organizar tudo no papel, tive também uma ajuda fundamental do Daniel Amorim, o famoso Cepa, um dos grandes poetas de Mato Grosso do Sul.
Como tem sido a repercussão do livro? A obra pode se transformar em um filme?
Para um cara que saiu do meio do lixo no Mercadão Municipal nos anos 80, e hoje tem um livro lançado por uma das maiores editoras do Brasil – com orelha de Milton, Caetano, Gal, Chico Buarque e Criolo – acho que já fui longe demais (risos). Por isso somente, já me daria por satisfeito. Mas, pra minha sorte, coisas têm acontecido, o ator Daniel Oliveira leu o livro e já me disse que quer fazer o papel do protagonista. O Tiago Iorc, que tem dois milhões de seguidores fez um post falando do livro que atraiu mais de trinta mil curtidas. Ainda ontem recebi um telefonema do Kuruma, ex-assistente do Spike Lee, que tinha ido jogar bola no campo do Chico Buarque. Ao ver o Chico falando do livro, ele saiu do campo e me ligou sondando pra saber o preço dos direitos do ‘Nada Consta’ (risos). Enfim, essas são todas promessas. E, até que algum contrato seja assinado, tudo não passa de um sonho distante.