No Bairro Centro Oeste, em Campo Grande, uma casa traz uma das propostas mais interessantes referentes ao cuidado de pacientes com transtornos psiquiátricos graves. A Residência Terapêutica Moinhos de Vento – uma referência ao delirante Dom Quixote de Cervantes – tem nove moradores. Deles, sete foram diagnosticados como esquizofrênicos. Lá, eles realizam atividades cotidianas, como lavar roupas, cuidar da horta e da casa, assistir à televisão ou fazer compras.
A casa é um dos dispositivos previstos na Lei nº 10.216, de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais. Além dela, há outros, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que oferecem um atendimento humanizado e buscam superar a ideia de asilamento.
Todos esses aspectos se relacionam diretamente com a Luta Antimanicomial, que tem seu dia comemorado nacionalmente hoje – na Praça do Rádio, a partir das 8h, acontece manifestação de agentes da saúde mental e pacientes.
“A diferença é que, nos centros de atenção e na residência terapêutica, cada indivíduo é um sujeito. Eles escolhem as roupas que vão usar, o corte de cabelo, como querem gastar o dinheiro que possuem”, explica Elodia Maldonado, gerente técnica da residência. Em Campo Grande, o espaço é ligado à Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Saúde (Sesau).
Inaugurada em dezembro de 2015, a casa tem sido bem-sucedida no trabalho de socialização dos moradores.“Eu já morei na rua, passei fome, sofri muito. Agora, eu sinto que tenho uma casa”, afirma Milson. Ele completa 26 anos na segunda-feira e foi um dos primeiros a chegar à casa. Antes, esteve internado no Hospital Nosso Lar, assim como a maior parte dos moradores.
É o caso de Dalva. Ela conta que, nos últimos cinco anos, passou a maior parte do tempo em internações. “Desde que me mudei para a residência, não tive mais problemas”, afirma. A residente é poeta e levará alguns de seus textos para a Praça do Rádio. A convivência social tem se demonstrado um diferencial terapêutico para os moradores.
“As primeiras semanas foram de adaptação, um pouco conturbadas. Como eles passaram a maior parte do tempo longe da sociedade, foi necessário ir com calma”, explica Elodia. No começo, os moradores não passavam do portão para fora, mas hoje já saem para caminhar, fazer compras, tomar sol. Há alguns dias, vizinhos convidaram Milson para um almoço. “É um esforço comunitário para a integração”, explica.
A convivência no local é mediada por cuidadores, contratados pela secretaria, que coordenam o cotidiano da casa 24 horas por dia. Segundo Elodia, na residência terapêutica não são realizados atendimentos médicos. “Para isso, vamos ao pronto-socorro ou ao Caps Vila Almeida”, explica. Os residentes também participam de oficinas nesses locais.
REFORMA PSIQUIÁTRICA
O Movimento Antimanicomial ganhou força no Brasil no final dos anos 80, sobretudo após o Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, que aconteceu em 18 de maio de 1987. Por esse motivo, a data se tornou um marco e vem sendo comemorada nacionalmente desde então. “A inspiração europeia foi essencial para a definição das diretrizes que passaram a guiar as redes de atendimento em diversos países”, comenta o psiquiatra André Veras.
Segundo ele, a proposta do movimento prevê que os atendimentos aos pacientes psiquiátricos aconteça de maneira comunitária, em substituição ao modelo dos hospitais psiquiátricos – mais conhecidos como hospícios ou manicômios. “Tratou-se de construir dispositivos que permitissem a reintegração desses pacientes à comunidade. Os manicômios asilavam, tornando quase impossível o retorno”, ressalta.
A coordenadora da área de Saúde Mental da Sesau, Ana Carolina Guimarães, explica que a reforma psiquiátrica no Brasil teve início com a reforma sanitária. Ambas se preocupavam em pensar novos conceitos de assistência que não se apoiassem apenas no asilo dos pacientes. “A diferença é essa aposta de que as pessoas podem ser tratadas junto da comunidade, acabar com a segregação e evitar que passem toda a vida dentro de um hospital”, comenta.
É importante fazer uma diferenciação, segundo Ana. As ações reformistas não são contra as internações, necessárias em situações graves, como surtos psicóticos, por exemplo. “O problema é o asilamento e a perda da identidade dos sujeitos. Muita gente passou a vida inteira em hospitais. O que vem acontecendo mostra que há outras maneiras de lidar com a questão”, afirma.