A dança é a arte da expressão do corpo e da identidade. Acrescenta-se aí: de qualquer identidade e de qualquer corpo, inclusive o masculino. A veia cênica pulsa igualmente em homens e mulheres, mas o preconceito com eles existe e não é novidade.
Nas danças clássica e moderna, ele é mais latente – por muitos anos, mulheres as dominaram. Com o surgimento das danças contemporâneas, essa discriminação diminui e os caminhos se abrem um pouco mais para os homens. Mas o percurso ainda é difícil.
O preconceito é um velho conhecido do ex-bailarino sul-mato-grossense Chico Neller, que fez nome e carreira contrariando pessoas da própria família. São 35 anos dedicados à dança, e tudo começou quando ele estudava em um colégio de padres que ficava no centro de Campo Grande.
“Terminei um curso de marceneiro e depois comecei a estudar lá. A gente tinha aula de educação física em volta do quarteirão, onde havia uma academia de dança. Conhecia dois garotos que faziam aulas lá e comecei a frequentar”. Escondeu-se de todos por cerca de um ano, até que chegou o dia de contar. “No começo ninguém aceitou, mas depois tudo ficou mais fácil. Recebi apoio de alguns, continuei contrariando outros, e ia dançando”.
Chico insistiu na carreira. Dançou profissionalmente, criou a companhia de dança Ginga em Campo Grande e dirigiu espetáculos de sucesso apresentados em festivais brasileiros. Hoje é professor de dança, coreógrafo e diretor de espetáculos.
Para ele, “essa intolerância quase não existe mais. Isso é mais coisa dos anos 80. O que existe é o preconceito com o artista da dança, com quem escolhe ser profissional da dança. Nenhum pai quer que o filho se envolva com arte. O problema já não é tanto a dança, é a arte”. Para falar de exemplos, Chico conta que já viu homens com formação em balé clássico desistirem da carreira para trabalhar em áreas diversas. “Muitos viram professores de dança, mas já vi gente trabalhando até na construção civil, como ajudante de pedreiro. Isso porque a formação clássica exige muita dedicação. Então, a dificuldade não está só na questão do gênero”.
GÊNERO
Marcos Mattos dança desde a adolescência. Hoje, aos 32 anos, atua profissionalmente nas companhias Dançurbana, Ginga, Conectivo Corpomancia e Corpo Expressão, em Mato Grosso do Sul. O preconceito ainda é atual, afirma, e atinge especialmente quem é homossexual.
É convicto do que diz porque sofreu e continua sofrendo com ele, mesmo que em menor grau.“Sou homossexual e tive de conviver muito tempo com isso. Sempre tive a dança como profissão, então fui amadurecendo, ignorando o preconceito e as piadinhas. Agora atuo em um cenário que considero mais ameno, o preconceito diminuiu bastante”.
Para Marcos, é o público que, em parte, mantém essa visão do artista – reduzida à análise de sua sexualidade e não centrada no seu desempenho, como deveria ser. E afirma: “esse preconceito não vem de quem faz dança, mas de quem vê dança”.
DANÇA CLÁSSICA
Na dança clássica, também é clássica a rejeição com o bailarino. A modalidade requer disciplina, força e muito treino, tanto dos homens quanto das mulheres. Entretanto, a falsa impressão de que a modalidade exige somente delicadeza acaba reproduzindo preconceito.
A bailarina, professora e especialista em dança Fernanda Gutierrez se preocupou com a pequena quantidade de homens inscritos no curso de balé clássico que ela produz pela segunda vez em Campo Grande, o Pantanal em Dança, e decidiu oferecer bolsas aos interessados.
Com a bolsa, os bailarinos de Mato Grosso do Sul e de outros estados brasileiros estão tendo a oportunidade de ter aulas com dois professores cubanos e também com experientes professores brasileiros. No dia 28 de janeiro, os alunos vão apresentar ainda o espetáculo “Dom Quixote”, no Teatro Dom Bosco, em Campo Grande.
Para Fernanda, há tanto homens quanto mulheres no balé, mas eles recebem menos incentivos das famílias para ir adiante. “A maioria entra em contato na escola pública e em projetos sociais. Sabendo disso, nossa ideia é captar o maior número de bailarinos oferecendo essa oportunidade”.